quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Campaniça, de Manuel da Fonseca


Análise literária - Em resumo, o conto relata uma história de opressão e de falta de perspectivas, cuja personagem Maria Campaniça sonha em sair da aldeia onde mora, mas não consegue escapar. Não se trata de uma história de uma heroína, mas de todo um contexto social. Campaniça é um símbolo coletivo e o espaço é o verdadeiro protagonista da narrativa, como observamos no decorrer do texto. Primeiramente, vale salientar que o espaço físico do conto se passa na Vila de Valgato (pertencente à Alentejo, uma região do centro-sul de Portugal), como podemos identificar no início do texto:
Valgato é terra ruim.
Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato, debaixo de um céu parado.

No entanto, o espaço físico é quase que uma metáfora que nos leva ao espaço psicológico/social que envolve e caracteriza intimamente o conto de Manuel da Fonseca. O narrador ao descrever os primeiros indícios da localização: “Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados”, já nos remete a uma impressão negativa de uma terra que fica nos “fundos”, ou seja, na insignificância de um córrego; “cercada de carrascais e sobreiros descarnados” mostra um caminho que expressa certa dureza, com uma vegetação sem vida, sem atrativos que induz a certo abandono e isolamento. Ou seja, o narrador, logo na primeira linha, nos dá um local (Valgato) e uma informação reiterada em três momentos do texto (terra ruim), que é confirmada por escolhas lexicais (adjetivos), como:  amarela, descanados e nua, no sentido de terra infértil, falta de alimento, fome, desolação. Também, marca em seu discurso as “ausências”: de gente (charneca sem fim), de plantações (desacampado), de Deus (céu parado). Tais descrições leva o leitor  a criar uma atmosfera depreciativa do espaço, que vai de encontro com o contexto social pós-guerra (1945) e as inúmeras consequências desse fato histórico, evidenciando um espaço onde não se pode fugir e não se cria perspectivas. Logo, Valgato é terra ruim e terra triste (“terra triste” também é reiterada em três momentos no texto).
De certa forma, cria-se uma reflexão simbólica do estado psicológico e emocional das personagens. O próprio título – Campaniça - denota uma personagem sem identificação, uma imagem coletiva da mulher do campo que carrega a sina da miséria e da sua condição feminina. Os poucos personagens nomeados (Maria Campaniça e sua mãe, Zé Tarrinha, Venta Larga, Baleizão, Carrasquinha), representam os habitantes de Valgato. Entre eles, Zé Tarrinha é relacionado à sua mula (o homem no mesmo nível dos animais); o apelido Venta Larga, demonstra falta de identidade dessas pessoas em seu contexto social e a sua total insignificância a ponto de se quer ser adequadamente nomeadas (personagens/objeto). Mas, nem tudo foram trevas, houve uma esperança (noite de estrelas), pois Zé Gaio conseguiu se libertar e sair de Valgato, no entanto, tal episódio se findou no espaço dos sonhos.
De acordo com Camocardi e Flory (2008, p.101), “o presente – terra ruim de homens tristes – é fonte da temporalidade e seu caráter continuativo – foi e continua sendo – providência a circularidade de destinos que se repetem”. O tempo presente na narrativa enfoca o espaço da realidade e o tempo passado o espaço dos sonhos como podemos observar nestes dois trechos da personagem Campaniça:

 (Passado) “Maria Campaniça, quando era solteira, pensava todos os dias em fugir da aldeia... Subia a quebrada, sentava-se no cabeço mais alto à sombra de um chaparro e punha-se a pensar para que lado partiria”.

(Presente) “Os olhos de Maria Campaniça estão cheios de água. Veio-lhe a certeza de que não sairá da aldeia e que, um dia, quando for velha, hão-de cobri-la de terra e pôr-lhe uma cruz em cima”.

Para Camocardi e Flory (2008, p.108), “o texto é uma somatória de quadros que se encadeiam, numa superposição cinematográfica, inter-relacionando-se numa situação textual unitária”. Como já foi dito, o conto é circular, apresenta personagens homogêneos em uma terra triste com homens tristes, cuja reiteração é estilisticamente usada pelo narrador. Os homens saem para trabalhar e sustentar suas pobres vidas, lutam contra a natureza agreste, o sono, a escuridão da noite, e, por fim, são envolvidos em uma condição sub-humana em um espaço prisional com início e fim previsto. A esperança é uma lembrança, o presente a única alternativa e o futuro é uma repetição de acontecimentos.
Outro ponto forte do texto é o seu caráter persuasivo. O narrador heterodiegético (visão com) conduz a narrativa na terceira pessoa e de certa forma abre um diálogo com o leitor, como destaca Camocardi e Flory (2008, p.108):

O narrador solidariza-se com os oprimidos, (...) através do discurso dialógico (diálogo narrador/leitor), marcado pela estilística da repetição e pelo aproveitamento do elemento lírico, como recusa tácita de reificação e como reação artística contra a opressão e a zoomorficação do homem.

O discurso dialógico nos remete, segundo Santos (2008, p.29), as características do neorrealismo e o “seu devotamento às causas sociais, às mazelas do homem, aos padecimentos da humanidade, sobre tudo no que tange às deformações e grandes diferenças sociais”. Essa aproximação entre a realidade e a literatura é bem evidente na obra de Fonseca.

Referência Bibliográfica:

CAMOCARDI, Elêusis M; FLORY, Suely F. V. Estratégias de persuasão em textos jornalísticos, publicitários e literários. São Paulo: Arte & Ciência, 2008.

FONSECA, Manuel da. Aldeia Nova. Lisboa: Caminho, 1984.


SANTOS, Elieser Bernado de. Campaniça e Aldeia Nova: um retrato da paisagem alentejana à luz do neo-realismo e da geografia cultural. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário