Análise Literária - O
poema “Catar Feijão” de João Cabral de Melo Neto tem 16 versos brancos, distribuídos
em duas oitavas. Neste poema, há uma alternância do tamanho do metro, oscilando
entre versos eneassílabos, decassílabos, hendecassílabos e dodecassílabos, no
entanto, os dodecassílabos são predominantes.
As medidas apresentam casos de elisão (ex. na água v.1) e sinérese (ex. boiará
v. 5), conforme a necessidade do metro. As últimas palavras de cada verso são
oxítonas (v. 1 ao 5 e v. 15) ou paroxítonas (v. 6 ao 14 e v 16). Em suma, as
estrofes são heterométricas.
Os
versos não apresentam ritmo homogêneo e não há segmentação rítmica
predominante, tampouco, apoio rítmico regular. No entanto, isso não significa
que ele não tenha certa sonoridade:
[...] a estrutura do poema baseia-se em
figuras de som como assonância e aliteração, no qual o uso das vogais /a/, /e/,
/i/, /o/ em todo o poema e da letra /g/ no verso 2, da letra /p/ no verso 7 e
das letras /t/ e /fl/ no verso 15 compõe quase uma melodia lírica. Qualquer
erro na escolha das palavras incorre em eco: som desagradável que deve ser
evitado para que o poema alcance a desejada sonoridade, (CHAVES,
2005).
Quanto
às rimas, elas são toantes (semelhança apenas nas vogais) e externas. Quanto as
suas disposições nas estrofes, as rimas toantes são cruzadas nos primeiros
quatros versos e emparelhadas nos versos 6 e 8; 10 e12 e 14 e 15. Nos demais
versos (5 e 7; 11 e 13 14 e 15) não há
rimas. Todas as rimas são ricas, a exceção são os versos 6 e 8, pois as
paroxítonas “verbo e eco” são da mesma classe morfológica (substantivo). Além
disso, há rimas agudas nos versos 1 ao 4 e graves nos versos 6, 8, 10, 12, 14 e
15.
Neste
poema, as pausas métricas não correspondem às pausas semânticas, o que
observamos são quatro quartetos (na sequência ordinária dos 16 versos). Nesses,
vale destacar os enjambement (versos 2/3, 6/7 e 10/11) e as suas contribuições
para a sonoridade do poema, (CHAVES, 2005).
Segundo
Nelly Novaes Coelho (1976, p. 85), a pausa semântica é “exigida pelo sentido
lógico da frase e assinalada também por sinais de pontuação”. Dessa forma, os
sinais de pontuação lógicos (dois pontos, ponto, vírgula e ponto e vírgula) estão
relacionados com as pausas semânticas. Além disso, esses pontos se repetem a
cada quatro versos.
A
organização sintática dos períodos que compõe os versos é predominantemente
indireta, no que se refere à estrutura frasal sujeito + verbo + complemento.
Isso ocorre na maioria dos versos. No entanto, também temos a ordem direta,
presente no verso mais instigante do poema: “a pedra dá à frase seu grão mais
vivo” (v.14). Vale destacar, que a estrutura sintática do poema é direcionada pela
símile (comparação) por meio de nexos lógicos.
Em
referência as classes morfológicas, observa-se a predominância de substantivos
(em sua maioria, concretos), seguido de verbos. Os adjetivos são pouco
utilizados, o que demonstra mais uma característica do estilo do poeta, pois no
gênero poema, os adjetivos tem expressiva fluência.
Os
verbos estão em sua maioria no infinitivo
(catar[4x]/jogar/escrever/boiar/soprar/quebrar), mas também há verbos na
terceira pessoa do singular do presente do indicativo (limita/entra/dá/obstrui/açula/isca),
do subjuntivo (entre), do futuro do presente do indicativo (boiará). Já o termo
“joga-se” (2x) está na voz passiva sintética ou pronominal.
O
fato dos verbos estarem predominantemente no infinitivo pode remeter a uma peculiaridade
do poema, pois “a ação do verbo prolonga-se infinitamente, como se estivesse
suspensa no tempo”, (COELHO, 1976, p. 116). O catar feijão pode ser finito, em
um determinado momento, mas “escolher as palavras mais preciosas” é algo
contínuo, que não se limita ao ato de escrever, pois a palavra em si tem uma
infinita representatividade de sentidos, que varia de significados e alcance,
entre os seus interlocutores.
Para
Nelly Coelho, “Dentre os elementos constitutivos do fenômeno poético que
precisam ser conhecidos a priori [...] está o valor representativo das classes
de palavras, pois do seu conhecimento depende que se percebam certos valores
estilísticos do texto” (1976, p.112). Como já dito, os substantivos concretos
estão entre as classes de palavras predominantes no poema, destaque para:
feijão, grãos, alguidar, dente, pedra (duros), papel (flexível), água
(penetrante). Trata-se de palavras simples, presente no cotidiano e no
linguajar da maioria das pessoas, o que dá um ar de realidade, acessibilidade,
que foge um pouco do rótulo fantasioso de muitos poemas sentimentalistas.
Quanto
ao valor estilístico de substantivos concretos (predominantes nos texto), Coelho
(1976, p.121) associa essa opção ao descobrimento de algo novo ou ao redescobrimento
de elementos em si desligados das relações ou qualidades normais, como é o caso
da comparação entre catar feijões e escolher palavras, por exemplo.
No
que se refere ao vocabulário utilizado, pode-se dizer que é simples e conciso.
Ele compara o tema do texto com uma atividade corriqueira, porém cheio de
significados, que só uma interpretação profunda é capaz de perceber. Se por um
lado as palavras são simples, o seu conteúdo semântico é denso.
Outra característica do texto é o uso de
elipses[1].
Em um primeiro olhar, isso pode causar certo estranhamento quanto à organização
sintática, mas também revela certa maestria na escolha lexical. Por exemplo, o
verso 2 inicia com o verbo jogar (joga-se os...), que se refere aos grãos do
verso 2 e as palavras do verso 3, porém, no segundo caso ele suprime o verbo:
“e [joga-se] as palavras na folha do papel;”, outro exemplo de elipse se refere
à palavra “pedra” nos últimos três versos.
Já, nos versos 6 e 7 não temos a supressão de um termo já mencionado,
mas de uma ideia: “[que é] água congelada, por [ser de] chumbo [o] seu verbo:
“pois para catar esse feijão, [é necessário] soprar nele". Essa estrutura sintática gera certa
dificuldade, estranhamento para compreender o poema, no entanto, leva o leitor
a refletir, a sair da sua zona de conforto de uma leitura mecanizada.
Quanto
aos processos intensificadores presentes no poema, percebermos a reiteração de
palavras e expressões, por exemplo, os substantivos: grão (5x), feijão (3x), os
verbos catar (5x), jogar (3x) e as expressões catar feijão (v1), catar esse
feijão (v7), nesse catar feijão (v.9). Também
percebemos o uso da anáfora nos versos 11 e 12 (um grão).
Outro
elemento intensificador no poema é o paralelismo, ou seja, a “repetição de
determinada ideia ou pensamento, em versos sucessivos, tendo como resultado a
intensificação do seu sentido”,(COELHO, 1976, p.91). Um exemplo são os versos 2
e 3: verbo + complemento + adjunto adverbial de lugar (vale lembrar que temos
uma elipse em referência ao verbo jogar no verso 3).
Em
referência aos processos imagísticos, podemos afirmar que o poema é de extrema
riqueza, é notória a opção pela símile e a metáfora. Obviamente, um poeta como
João Cabral não dedicaria o seu tempo para escrever sobre catar feijões sem uma
relação sensata, por isso, ele usa esse gesto simples e concreto para falar de
algo engenhoso e abstrato (ato de escrever). Nesse sentido, os elementos
imagísticos do poema já iniciam com o título, que revela, como diria Coelho
(1976, p. 60), a abertura de um caminho para a compreensão do núcleo ideativo
do poema. No caso de Catar Feijão, o título é a metáfora chave do fazer
poético.
Conforme
Chaves (2005), o autor empresta ao eu-lírico a possibilidade de criar um
paralelo entre a simplicidade de catar feijão e a complexidade de escolher
palavras na elaboração de um poema:
[...] isso está explícito no primeiro verso: Catar
feijão "se limita" como escrever. Ao mencionar a palavra “se limita”
ele cria uma proximidade comparando e salientando as diferenças entre os dois
atos valorando-os, por exemplo: o elemento imprestável encontrado no catar
feijão terá valor diferente no ato de escrever, (CHAVES, 2005).
Também
vale reforçar, que o primeiro termo da comparação é o ato de catar feijão, uma
atividade braçal, o segundo, é o ato de escrever, uma atividade intelectual.
Mas como comparar duas atividades aparentemente tão antagônicas? Bom, surge
nessa aproximação, o primeiro “choque”, reflexão que o eu-lírico transmite ao
leitor, por meio dessa símile. Nesse sentido, o leitor pode se perguntar: o que
esses dois atos tem em comum? A resposta dá o tom do poema: a capacidade de
escolher.
Ao
observar a organização sintática, a seleção lexical e os tempos e modos verbais
utilizados no poema, podemos dizer que se apropria de um tipo textual
argumentativo que expõe semelhanças e diferenças que entre o ato de catar
feijão e o de escrever, como defende Rocha:
As duas estrofes ou partes do poema são
ligados por um continuum lógico,
através da conjunção “ora”, de valor ilativo, pois introduz um conclusão que
revela a diferença fundamental. Calçada nas similaridades e dessemelhanças
entre um ato (o de catar feijão) e outro (o de escrever). Cada uma das metades
do poema pode, por sua vez, ser divididas em duas semi-partes, com quatro
versos, (ROCHA, 2008, p. 296).
As semipartes citadas
por Rocha apresentam a seguinte estrutura argumentativa:
1ª semi-parte: A cata é similar à
escrita: jogam-se e catam-se na água como no papel.
2ª semi-parte: É certo que a escrita
difere num ponto de cata: nela todas as palavras ficam na superfície. Na
escrita, portanto, deve- se não catar no fundo a palavra, como se faz na cata
do feijão, mas soprá-la na superfície.
3ª semi-parte: Ora, na cata há um risco,
o grão duro que pode afundar e se confundir entre os grãos bons.
4ª semi-parte: Certamente não há risco
na escrita, pois como todas as palavras ficam na superfície, e são por isso
sopradas, desejam-se justamente as mais duras, pétreas, (ROCHA, 2008, p. 296).
Sobre
o conteúdo do poema, é plausível destacar que as atividades/procedimentos em
comparação se diferenciam em seu conteúdo semântico. A palavra “pedra” (v. 11 e
14), por exemplo, na segunda estrofe tem dois significados diferentes e
essenciais para o entendimento do poema. O primeiro significado remete ao risco
indesejável de encontrá-la entre os grãos bons e contrasta com o seu segundo
significado, que remete a algo precioso e essencial que incita o leitor a mergulhar
no texto.
Os
versos 7 e 8 trazem os termos “esse feijão”, “leve”,
“oco”, “palha” e “eco” mergulhados em uma linguagem conotativa, que leva o
leitor a refletir sobre a necessidade de eliminar da escrita às palavras
superficiais, vazias, que não acrescentam o sentido do texto, que lá estão como
mera alegoria. Além das palavras vazias, o sujeito poético despreza os ecos,
que a seu entender, denota sujeira/poluição sonora.
Dando
sequencia a lógica argumentativa do poema, surge no verso 15 às palavras "fluviante"
e "flutual", que induz a uma imediata estranheza por parte do leitor
que, no mínimo, o leva a reler o verso. Tais termos, neologismos dos adjetivos
flutuante e fluvial, são utilizados para uma reflexão sobre uma leitura fácil, supérflua,
ordinária. A palavra “pedra” (v.14) e toda a sua carga semântica vem obstruir
essa fluidez e oportunizar uma quebra de paradigmas, proporcionar uma
provocação, que remete e obriga o seu interlocutor a sair da inércia, o que vem
de encontro, com o sentido dos versos 7 e 8, citados anteriormente.
Retomando
as observações sobre os verbos, nos versos 14, 15 e 16 eles têm
como sujeito a “pedra” (que dá a frase o seu grão mais vivo). Assim sendo, a pedra obstrui a leitura
fluviante, flutual, açula a atenção para o texto e isca/provoca o leitor ao
risco de explorar a pedra mais preciosa da leitura. Vale destacar, que os
dois últimos versos empregam três verbos transitivos diretos
(obstrui/açula/isca) de forma gradativa para finalizar a lógica argumentativa e
reflexiva do poema.
O termo
“risco”, do último verso, tem um tom provocativo e levemente irônico, que
remete a aventura de romper o tradicional e aprofundar-se na leitura,
encontrando dessa forma, novos sentidos para as palavras e para os seus
receptores.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao
observar os aspectos que integram o processo poético, podemos dizer que ele põe
em prática o procedimento prescrito para catar palavras, pois se trata de um
poema com conteúdo semântico provocador, com escolhas lexicais que condizem com
a sua mensagem, Nesse sentido, nem um termo é supérfluo ou insignificante. Os
aspectos conotativos e denotativos não competem entre si, mas se complementam,
tanto no material (feijão), quanto no ideal (palavras). Percebemos uma escolha
arquitetada das palavras, expressões, posições, etc.
Assim
sendo, só resta afirmar que foram catadas as melhores palavras para a
composição deste poema, pois Cabral é um poeta coerente,
racional, objetivo, conciso sem abrir mão do gênero lírico. Em Catar Feijão,
ele reafirma o seu estilo e empresta ao eu-lírico a possibilidade de uso dessas
linguagens para constatar uma realidade do cotidiano, como um parâmetro para
alcançar o objetivo da construção do texto, onde a pedra modifica o “fluvial e
flutuante”, (CHAVES, 2005).
Como
destacou Carlos Felipe Moisés, Cabral cria uma nova expressão poética externa, sem
sentimentalismos comuns, rompe os clichês e constrói uma obra coerente e
centrada (1996, p. 152). Não são poemas fáceis e nem poderiam ser, pois ele
sabe catar palavras e leitores.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CHAVES, Regina. A poesia de João Cabral de Melo Neto.
Blog: Pensamento e Lógica. Cascavel/2007. Disponível em: http://pensamentoelogica.blogspot.com.br/search/label/poema%20catar%20feij%C3%A3o. Acesso em 18 de
novembro de 2016.
COELHO,
Nelly Novaes. Literatura &
Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. São Paulo: Quíron,
1976.
MOISÉS,
Carlos Felipe. Poema não é difícil.
Introdução à análise de texto poético. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996.
OLIVEIRA, Dudu. Análise de textos literários. Recanto das Letras. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1631117. Acesso em 15 de novembro de 2016.
ROCHA, Francisco José Gonçalves Lima. Representação e prática da criação
literária na obra de João Cabral de Melo Neto. Análise textual e prototextual.
2011. 296-300 p. Tese (Doutorado em Literatura em regime de co-tutela) –
Universités Paris 8 – Vincennes-Saint-Denis e Universidade de São Paulo, Paris
e São Paulo, 2011.
FONTE
MELO
NETO, João Cabral de. Antologia poética.
A Educação pela Pedra 2ª. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973.
MONFARDINI, Adriana. Roteiro da disciplina de Literatura
brasileira lírica. 5ª fase do Curso de Letras: Língua Portuguesa e
Literaturas. Polo de Agudo. Universidade Federal de Santa Maria e Universidade
Aberta do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2016.
[1] Figura
de sintaxe que omite um termo ou
oração que podemos subentender ou elimina termos supérfluos em prol de um texto
enxuto.
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