quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

“A pedra dá á frase seu grão mais vivo”

Análise Literária - O poema “Catar Feijão” de João Cabral de Melo Neto tem 16 versos brancos, distribuídos em duas oitavas. Neste poema, há uma alternância do tamanho do metro, oscilando entre versos eneassílabos, decassílabos, hendecassílabos e dodecassílabos, no entanto, os dodecassílabos são predominantes.  As medidas apresentam casos de elisão (ex. na água v.1) e sinérese (ex. boiará v. 5), conforme a necessidade do metro. As últimas palavras de cada verso são oxítonas (v. 1 ao 5 e v. 15) ou paroxítonas (v. 6 ao 14 e v 16). Em suma, as estrofes são heterométricas.
Os versos não apresentam ritmo homogêneo e não há segmentação rítmica predominante, tampouco, apoio rítmico regular. No entanto, isso não significa que ele não tenha certa sonoridade:
[...] a estrutura do poema baseia-se em figuras de som como assonância e aliteração, no qual o uso das vogais /a/, /e/, /i/, /o/ em todo o poema e da letra /g/ no verso 2, da letra /p/ no verso 7 e das letras /t/ e /fl/ no verso 15 compõe quase uma melodia lírica. Qualquer erro na escolha das palavras incorre em eco: som desagradável que deve ser evitado para que o poema alcance a desejada sonoridade, (CHAVES, 2005).

Quanto às rimas, elas são toantes (semelhança apenas nas vogais) e externas. Quanto as suas disposições nas estrofes, as rimas toantes são cruzadas nos primeiros quatros versos e emparelhadas nos versos 6 e 8; 10 e12 e 14 e 15. Nos demais versos (5 e 7; 11 e 13  14 e 15) não há rimas. Todas as rimas são ricas, a exceção são os versos 6 e 8, pois as paroxítonas “verbo e eco” são da mesma classe morfológica (substantivo). Além disso, há rimas agudas nos versos 1 ao 4 e graves nos versos 6, 8, 10, 12, 14 e 15.
Neste poema, as pausas métricas não correspondem às pausas semânticas, o que observamos são quatro quartetos (na sequência ordinária dos 16 versos). Nesses, vale destacar os enjambement (versos 2/3, 6/7 e 10/11) e as suas contribuições para a sonoridade do poema, (CHAVES, 2005).
Segundo Nelly Novaes Coelho (1976, p. 85), a pausa semântica é “exigida pelo sentido lógico da frase e assinalada também por sinais de pontuação”. Dessa forma, os sinais de pontuação lógicos (dois pontos, ponto, vírgula e ponto e vírgula) estão relacionados com as pausas semânticas. Além disso, esses pontos se repetem a cada quatro versos.
A organização sintática dos períodos que compõe os versos é predominantemente indireta, no que se refere à estrutura frasal sujeito + verbo + complemento. Isso ocorre na maioria dos versos. No entanto, também temos a ordem direta, presente no verso mais instigante do poema: “a pedra dá à frase seu grão mais vivo” (v.14). Vale destacar, que a estrutura sintática do poema é direcionada pela símile (comparação) por meio de nexos lógicos.
Em referência as classes morfológicas, observa-se a predominância de substantivos (em sua maioria, concretos), seguido de verbos. Os adjetivos são pouco utilizados, o que demonstra mais uma característica do estilo do poeta, pois no gênero poema, os adjetivos tem expressiva fluência.
Os verbos estão em sua maioria no infinitivo (catar[4x]/jogar/escrever/boiar/soprar/quebrar), mas também há verbos na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (limita/entra/dá/obstrui/açula/isca), do subjuntivo (entre), do futuro do presente do indicativo (boiará). Já o termo “joga-se” (2x) está  na voz passiva sintética ou pronominal.
O fato dos verbos estarem predominantemente no infinitivo pode remeter a uma peculiaridade do poema, pois “a ação do verbo prolonga-se infinitamente, como se estivesse suspensa no tempo”, (COELHO, 1976, p. 116). O catar feijão pode ser finito, em um determinado momento, mas “escolher as palavras mais preciosas” é algo contínuo, que não se limita ao ato de escrever, pois a palavra em si tem uma infinita representatividade de sentidos, que varia de significados e alcance, entre os seus interlocutores.
Para Nelly Coelho, “Dentre os elementos constitutivos do fenômeno poético que precisam ser conhecidos a priori [...] está o valor representativo das classes de palavras, pois do seu conhecimento depende que se percebam certos valores estilísticos do texto” (1976, p.112). Como já dito, os substantivos concretos estão entre as classes de palavras predominantes no poema, destaque para: feijão, grãos, alguidar, dente, pedra (duros), papel (flexível), água (penetrante). Trata-se de palavras simples, presente no cotidiano e no linguajar da maioria das pessoas, o que dá um ar de realidade, acessibilidade, que foge um pouco do rótulo fantasioso de muitos poemas sentimentalistas.
Quanto ao valor estilístico de substantivos concretos (predominantes nos texto), Coelho (1976, p.121) associa essa opção ao descobrimento de algo novo ou ao redescobrimento de elementos em si desligados das relações ou qualidades normais, como é o caso da comparação entre catar feijões e escolher palavras, por exemplo.
No que se refere ao vocabulário utilizado, pode-se dizer que é simples e conciso. Ele compara o tema do texto com uma atividade corriqueira, porém cheio de significados, que só uma interpretação profunda é capaz de perceber. Se por um lado as palavras são simples, o seu conteúdo semântico é denso.
 Outra característica do texto é o uso de elipses[1]. Em um primeiro olhar, isso pode causar certo estranhamento quanto à organização sintática, mas também revela certa maestria na escolha lexical. Por exemplo, o verso 2 inicia com o verbo jogar (joga-se os...), que se refere aos grãos do verso 2 e as palavras do verso 3, porém, no segundo caso ele suprime o verbo: “e [joga-se] as palavras na folha do papel;”, outro exemplo de elipse se refere à palavra “pedra” nos últimos três versos.  Já, nos versos 6 e 7 não temos a supressão de um termo já mencionado, mas de uma ideia: “[que é] água congelada, por [ser de] chumbo [o] seu verbo: “pois para catar esse feijão, [é necessário] soprar nele".  Essa estrutura sintática gera certa dificuldade, estranhamento para compreender o poema, no entanto, leva o leitor a refletir, a sair da sua zona de conforto de uma leitura mecanizada. 
Quanto aos processos intensificadores presentes no poema, percebermos a reiteração de palavras e expressões, por exemplo, os substantivos: grão (5x), feijão (3x), os verbos catar (5x), jogar (3x) e as expressões catar feijão (v1), catar esse feijão (v7),  nesse catar feijão (v.9). Também percebemos o uso da anáfora nos versos 11 e 12 (um grão).
Outro elemento intensificador no poema é o paralelismo, ou seja, a “repetição de determinada ideia ou pensamento, em versos sucessivos, tendo como resultado a intensificação do seu sentido”,(COELHO, 1976, p.91). Um exemplo são os versos 2 e 3: verbo + complemento + adjunto adverbial de lugar (vale lembrar que temos uma elipse em referência ao verbo jogar no verso 3).
Em referência aos processos imagísticos, podemos afirmar que o poema é de extrema riqueza, é notória a opção pela símile e a metáfora. Obviamente, um poeta como João Cabral não dedicaria o seu tempo para escrever sobre catar feijões sem uma relação sensata, por isso, ele usa esse gesto simples e concreto para falar de algo engenhoso e abstrato (ato de escrever). Nesse sentido, os elementos imagísticos do poema já iniciam com o título, que revela, como diria Coelho (1976, p. 60), a abertura de um caminho para a compreensão do núcleo ideativo do poema. No caso de Catar Feijão, o título é a metáfora chave do fazer poético.
Conforme Chaves (2005), o autor empresta ao eu-lírico a possibilidade de criar um paralelo entre a simplicidade de catar feijão e a complexidade de escolher palavras na elaboração de um poema:
[...] isso está explícito no primeiro verso: Catar feijão "se limita" como escrever. Ao mencionar a palavra “se limita” ele cria uma proximidade comparando e salientando as diferenças entre os dois atos valorando-os, por exemplo: o elemento imprestável encontrado no catar feijão terá valor diferente no ato de escrever, (CHAVES, 2005).

Também vale reforçar, que o primeiro termo da comparação é o ato de catar feijão, uma atividade braçal, o segundo, é o ato de escrever, uma atividade intelectual. Mas como comparar duas atividades aparentemente tão antagônicas? Bom, surge nessa aproximação, o primeiro “choque”, reflexão que o eu-lírico transmite ao leitor, por meio dessa símile. Nesse sentido, o leitor pode se perguntar: o que esses dois atos tem em comum? A resposta dá o tom do poema: a capacidade de escolher.
Ao observar a organização sintática, a seleção lexical e os tempos e modos verbais utilizados no poema, podemos dizer que se apropria de um tipo textual argumentativo que expõe semelhanças e diferenças que entre o ato de catar feijão e o de escrever, como defende Rocha:
As duas estrofes ou partes do poema são ligados por um continuum lógico, através da conjunção “ora”, de valor ilativo, pois introduz um conclusão que revela a diferença fundamental. Calçada nas similaridades e dessemelhanças entre um ato (o de catar feijão) e outro (o de escrever). Cada uma das metades do poema pode, por sua vez, ser divididas em duas semi-partes, com quatro versos, (ROCHA, 2008, p. 296).

As semipartes citadas por Rocha apresentam a seguinte estrutura argumentativa:
1ª semi-parte: A cata é similar à escrita: jogam-se e catam-se na água como no papel.
2ª semi-parte: É certo que a escrita difere num ponto de cata: nela todas as palavras ficam na superfície. Na escrita, portanto, deve- se não catar no fundo a palavra, como se faz na cata do feijão, mas soprá-la na superfície.
3ª semi-parte: Ora, na cata há um risco, o grão duro que pode afundar e se confundir entre os grãos bons.
4ª semi-parte: Certamente não há risco na escrita, pois como todas as palavras ficam na superfície, e são por isso sopradas, desejam-se justamente as mais duras, pétreas, (ROCHA, 2008, p. 296).

Sobre o conteúdo do poema, é plausível destacar que as atividades/procedimentos em comparação se diferenciam em seu conteúdo semântico. A palavra “pedra” (v. 11 e 14), por exemplo, na segunda estrofe tem dois significados diferentes e essenciais para o entendimento do poema. O primeiro significado remete ao risco indesejável de encontrá-la entre os grãos bons e contrasta com o seu segundo significado, que remete a algo precioso e essencial que incita o leitor a mergulhar no texto.
Os versos 7 e 8  trazem os termos  “esse feijão”, “leve”, “oco”, “palha” e “eco” mergulhados em uma linguagem conotativa, que leva o leitor a refletir sobre a necessidade de eliminar da escrita às palavras superficiais, vazias, que não acrescentam o sentido do texto, que lá estão como mera alegoria. Além das palavras vazias, o sujeito poético despreza os ecos, que a seu entender, denota sujeira/poluição sonora.
Dando sequencia a lógica argumentativa do poema, surge no verso 15 às palavras "fluviante" e "flutual", que induz a uma imediata estranheza por parte do leitor que, no mínimo, o leva a reler o verso. Tais termos, neologismos dos adjetivos flutuante e fluvial, são utilizados para uma reflexão sobre uma leitura fácil, supérflua, ordinária. A palavra “pedra” (v.14) e toda a sua carga semântica vem obstruir essa fluidez e oportunizar uma quebra de paradigmas, proporcionar uma provocação, que remete e obriga o seu interlocutor a sair da inércia, o que vem de encontro, com o sentido dos versos 7 e 8, citados anteriormente.
Retomando as observações sobre os verbos, nos versos 14, 15 e 16 eles têm como sujeito a “pedra” (que dá a frase o seu grão mais vivo).  Assim sendo, a pedra obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção para o texto e isca/provoca o leitor ao risco de explorar a pedra mais preciosa da leitura. Vale destacar, que os dois últimos versos empregam três verbos transitivos diretos (obstrui/açula/isca) de forma gradativa para finalizar a lógica argumentativa e reflexiva do poema.
O termo “risco”, do último verso, tem um tom provocativo e levemente irônico, que remete a aventura de romper o tradicional e aprofundar-se na leitura, encontrando dessa forma, novos sentidos para as palavras e para os seus receptores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao observar os aspectos que integram o processo poético, podemos dizer que ele põe em prática o procedimento prescrito para catar palavras, pois se trata de um poema com conteúdo semântico provocador, com escolhas lexicais que condizem com a sua mensagem, Nesse sentido, nem um termo é supérfluo ou insignificante. Os aspectos conotativos e denotativos não competem entre si, mas se complementam, tanto no material (feijão), quanto no ideal (palavras). Percebemos uma escolha arquitetada das palavras, expressões, posições, etc.
Assim sendo, só resta afirmar que foram catadas as melhores palavras para a composição deste poema, pois Cabral é um poeta coerente, racional, objetivo, conciso sem abrir mão do gênero lírico. Em Catar Feijão, ele reafirma o seu estilo e empresta ao eu-lírico a possibilidade de uso dessas linguagens para constatar uma realidade do cotidiano, como um parâmetro para alcançar o objetivo da construção do texto, onde a pedra modifica o “fluvial e flutuante”, (CHAVES, 2005).
Como destacou Carlos Felipe Moisés, Cabral cria uma nova expressão poética externa, sem sentimentalismos comuns, rompe os clichês e constrói uma obra coerente e centrada (1996, p. 152). Não são poemas fáceis e nem poderiam ser, pois ele sabe catar palavras e leitores.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHAVES, Regina. A poesia de João Cabral de Melo Neto. Blog: Pensamento e Lógica. Cascavel/2007. Disponível em: http://pensamentoelogica.blogspot.com.br/search/label/poema%20catar%20feij%C3%A3o. Acesso em 18 de novembro de 2016.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. São Paulo: Quíron, 1976.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poema não é difícil. Introdução à análise de texto poético. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996.

OLIVEIRA, Dudu. Análise de textos literários. Recanto das Letras. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1631117. Acesso em 15 de novembro de 2016.

ROCHA, Francisco José Gonçalves Lima. Representação e prática da criação literária na obra de João Cabral de Melo Neto. Análise textual e prototextual. 2011. 296-300 p. Tese (Doutorado em Literatura em regime de co-tutela) – Universités Paris 8 – Vincennes-Saint-Denis e Universidade de São Paulo, Paris e São Paulo, 2011.

FONTE

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. A Educação pela Pedra 2ª. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973.

MONFARDINI, Adriana. Roteiro da disciplina de Literatura brasileira lírica. 5ª fase do Curso de Letras: Língua Portuguesa e Literaturas. Polo de Agudo. Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Aberta do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2016.






[1] Figura de sintaxe que omite um termo ou oração que podemos subentender ou elimina termos supérfluos em prol de um texto enxuto. 

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