Análise Literária - Toda a tensão do conto se deu sobre um único
personagem, Jacinto, que tem como amigo íntimo, José (nomeado no IV Capítulo),
o narrador de seu dilema existencial. Trata-se de um narrador homodiegético, ou seja, ele se apresentou
na primeira pessoa, incluindo-se dessa forma no texto. Creio que o narrador teve
uma visão por trás (focalização
zero), ou seja, ele assumiu uma visão globalizante, total dos fatos narrados e
dos próprios sentimentos de Jacinto, a ponto de ironizá-lo[1]
e, também, solidarizar-se[2]
com ele.
O narrador, inicialmente, descreveu[3]
Jacinto como um amigo precioso, jovem, rico, refinado e privilegiado. Uma
pessoa com acesso a objetos e tecnologias modernas, muitas delas
desnecessárias, em relação à praticidade, mas importantes para firmar a imagem
de um homem contextualizado com as mudanças e avanços do seu tempo.
Nesse sentido, a descrição do narrador em
relação ao espaço em que Jacinto viveu na cidade foi extremamente minuciosa[4],
como se cada detalhe fosse crucial para firmar a personalidade da personagem
principal. Muitas vezes, o exagero das transcrições remeteu a certo sarcasmo,
em valorar o que aparentemente não tem grandes valores, como se o mundo de
Jacinto fosse artificial. É como se houvesse um conflito entre o “tudo”
material e o “nada” existencial. E cada vez que o narrador exaltou os excessos
de Jacinto, indiretamente, ele enfatizou a insignificância de um mundo
aparentemente completo, tangível, ao alcance do homem civilizado. O que percebi,
por meio da narrativa, é que se trata de
um sujeito visivelmente perdido, em plena procura de algo para dar sentido a
sua “pobre rica” vida.
Em poucas palavras, posso afirmar que a
personagem Jacinto procurou no mundo moderno, civilizado, algo que lhe
satisfizesse. Não encontrando e entediado, Jacinto resolveu viajar, e para
tanto escolheu a quinta de Torges, um ambiente agreste o qual planejou
assemelhar ao seu luxuoso palácio. No entanto, entre o ideal e o real, Jacinto encontrou
uma desafiadora surpresa; com isso adentrei no segundo momento do conto: a
inserção de Jacinto no ambiente rural.
Tudo
começou com uma série de equívocos (página 11), malas extraviadas,
correspondências perdidas, perspectivas frustradas. Jacinto, um homem que
prezava rituais/com comportamento metódico, foi surpreendido pelo inesperado e
pelo inesperado do inesperado, ou seja, o primeiro acontecimento foi a frustração
pela sua planejada viagem, nada deu certo; o segundo acontecimento foi a sua
atração pela simplicidade do mundo rural.
Mundo
esse, caracterizado pelo narrador como um local singelo, com belezas naturais, sem
influências do ambiente urbano e da civilização. Vale lembrar que, na cidade, Jacinto
vivia de forma planejada, luxuosa, engenhosa e, no campo, deparou-se com uma
beleza natural, harmoniosa, sacra e encantadora[5]. No Jasmineiro, as
novidades, as peculiaridades, as vitrines do homem moderno, seduziam os olhos e
a curiosidade das pessoas, e, no campo, o silêncio, o perfume, as cores penetravam
na alma dos seus observadores.
Nesse contexto, a paisagem rural foi narrada
como incrivelmente simples e inexplicavelmente bela. Um local de contemplação,
onde a ausência de artifícios e deslumbres do homem civilizado proporcionou um
encontro com a essência humana.
Diante desse novo contexto, inicialmente, Jacinto exprimiu uma
inata melancolia[6].
Posteriormente, a personagem entrou no clímax de sua nova vida ao aprovar o
humilde jantar[7].
Após essa experiência simples e inusitada, ocorre a perplexidade, a entrega e,
consequentemente, a transformação. A partir desse momento, Jacinto começa a
rever os seus conceitos sobre a civilização e sobre a sua vida. O homem
inacabado sede espaço para um homem pleno. O narrador, que muitas vezes abusou
de suas ironias, provou do mesmo tom, pois o esperado era que Jacinto
civilizasse o mundo rural, mas é o contexto rural que transformou “o mais
civilizado dos seus amigos”.
Mas,
como ocorreu essa inesperada reviravolta? O primeiro fator para essa mudança foi
a falta de alternativa. Como já salientei, tudo começou com um descaso, uma
armadilha/uma surpresa do destino. Posteriormente, a mudança de Jacinto se concretizou
no encontro de um sentido para a sua vida, que não estava no mundo “civilizado”
e todas as suas parafernálias, mas onde tudo se originou, na sua essência, nos
primórdios da humanidade, ou seja, precisou o homem evoluir muito para saber
que o importante estava justamente onde tudo começou, na simplicidade da vida.
Com
isso, o eu lírico deixa bem evidente a sua concepção valorativa da cidade e do
campo. Os valores da sociedade civilizada se confundiam com a imagem de um
homem sofisticado, intelectual e ao mesmo tempo fútil e alienado. De certa
forma, o consumismo desenfreado já caracterizava o homem civilizado, que se
enchia de novidades para se moldar, como se aqueles objetos fossem completar ou
proporcionar sentido as suas vidas. Quanto mais acesso às modernidades, mais
civilizado era o homem, a sociedade. O acesso a grandes e numerosas obras
também caracterizou esse homem, como uma pessoa que tem pleno contato com as
informações, os avanços científicos e discussões intelectuais, filosóficas,
como observamos no contexto urbano de Jacinto. Já a dimensão campesina está
justamente na inversão desses valores. Não foi necessário equipamentos modernos,
comidas e bebidas sofisticadas, milhares de exemplares de livros, assessorias
especializadas para oferecer a Jacinto o que ele a vida inteira almejou, de uma
forma que jamais imaginara.
Nesse sentido, podemos concluir que o mundo
civilizado de Jacinto era um mundo fútil, apesar de toda modernidade e
filosofia. Era um jovem rico, culto e infeliz. Sua civilização, assim como os seus objetos, foi frágil,
limitada, sujeita às consequências do tempo – o que era essencial em um momento
era sucata em outro, pois tem como base o material, o consumismo desenfreado, a
irresponsabilidade social e ambiental, não muito diferente do nosso persistente
modelo capitalista. Já a mudança espacial (geográfica e social) de Jacinto não
foi a descoberta de um mundo novo, mas a volta para um velho mundo, onde não se
tinha tudo que se achava necessário, mas se tinha o suficiente para conquistar
o essencial: a vida.
Considerações Finais – Em
minha análise, não me detive
à sequência fidedigna da história, mas em pontos que julguei mais interessantes,
conforme o roteiro de estudo proposto. Particularmente, gostei do conto de Eça
de Queirós, achei um texto envolvente, irônico, engraçado, tenso, crítico e com
um desfecho positivo e reflexível. O casamento de Jacinto foi como uma prova
definitiva do ponto de vista do eu lírico, ao se posicionar diante do contexto
rural em contraponto a criticada Civilização.
Referência
Bibliográfica:
QUEIRÓS De, Eça. Civilização. Biblioteca Virtualbooks. Disponível em: http://nte.ufsm.br/moodle2_UAB/course/view.php?id=2346. Acesso em 4 de abril de 2016.
[1] "Nunca
recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda e sagazes e subtis instrumentos
para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar
emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas!”,
p. 3.
[2]
“Colhi um cravo, entramos: e o meu pobre Jacinto contemplou enfim as salas do
seu solar!”, p.13.
[3]
“Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num
palácio, Nas suas amizades foi sempre tão feliz [...] Do amor só experimentara
o mel [...]. Ambição, sentira somente a e compreender bem as ideias gerais, e a
«ponta o seu intelecto» [...] Era ele, de todos os homens que conheci, o mais
complexamente civilizado”, p.1.
[4]
“Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o
cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; (...) E deste modo
Jacinto ficava, diante o espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante
catorze minutos”, p. 7.
[5]
“A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os
bosques quase sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas
cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma
doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza - não é para mim, homem de
pequena arte. Nem creio mesmo que fosse para o mestre Horácio. Quem pode dizer
a beleza das coisas, tão simples e inexprimível? Jacinto adiante, na água
tarda, murmurava: «Ah! Que beleza!»”, p.12.
[6]
“Paramos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para
guardar o grão; e aí depusemos melancolicamente o que nos ficara de trinta e
sete malas os paletós alvadios, uma bengala e um « Jornal da Tarde». Através
das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras
azuis de além-rio, o ar
entrava,
montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de
pinheiro bravo. E, lá de baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz
de pegureiro cantando. Jacinto balbuciou: «É horroroso!» Eu murmurei: «É
campestre!»”, pp.13 e 14.
[7]
“Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu
lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um
gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou-se para
mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos.
Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta... E sorriu,
murmurando com espanto: «Está bom!»”, p. 15.
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