quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Literatura Infantil: Sobre o poema Bolha


(1) Olha a bolha d’água
(2) No galho!
(3) Olha o orvalho!

(4) Olha a bolha de vinho
(5) Na rolha!
(6) Olha a bolha!

(7) Olha a bolha na mão
(8) Que trabalha!

(9) Olha a bolha de sabão
(10) Na ponta da palha:
(11) Brilha, espelha
(12) e se espalha.
(13) Olha a bolha!

(14) Olha a bolha
(15) Que molha
(16) A mão do menino:

(17) A bolha da chuva da calha!

(Cecília Meireles)

I – Aspectos estruturais e semânticos

Para Nelly Novaes Coelho, há quatro aspectos que integram o processo poético: os elementos estruturais da linguagem poética, os processos intensificadores, os processos imagísticos e a natureza das classes de palavras (1976, p.61).
O poema em questão apresenta seis estrofes livres e 17 versos heterométricos. Não há um esquema homogêneo quanto à disposição das rimas, ora ela é intercalada, ora emparelhada, ou seja, trata-se de rimas misturadas, apesar da reiteração de palavras com rimas semelhantes como palha, espalha; galho, orvalho; calha, molha.  Quanto à pontuação, observa-se o uso abundante da exclamação (signos emotivos) e o ponto e os dois pontos (signos lógicos).
De acordo com Coelho, “o significado poético latente em um poema pode ser realçado ou intensificado de vários modos”, (1976, p.87). Um exemplo de reiteração é o substantivo “bolha” (aparece nove vezes), o verbo “Olha” (oito vezes).  Obviamente, essa reiteração influencia na musicalidade do poema. A expressão “Olha a bolha” (sete vezes) é um exemplo de anáfora. Também vale destacar, que na primeira estrofe, destaca-se a aliteração dos fonemas /b/ /d/ (bolha d’água), que remete a sons de estouro.
Dentro dos processos imagísticos temos uma metáfora em relação ao significado de bolha (bolha de sabão e bolha de calo). No primeiro caso, a bolha remete a leveza de uma brincadeira de criança; no segundo, a árdua consequência de um trabalho duro. Outro o recurso é a sinestesia, o sujeito lírico enxerga, toca e degusta as diversas bolhas presentes no decorrer do poema.
Por fim, destaco a força do verbo “olhar” no referido poema, a opção pelo modo imperativo fez toda a diferença, pois o eu lírico impõe esse olhar de tal forma que o leitor não consegue desviar.




II – O leitor

Primeiramente, vale salientar que  a escolha de um possível leitor não significa que o referido poema não esteja acessível a outras faixas etárias. Para esse trabalho, sugiro o poema de Cecília Meireles para faixa etária entre 12 e 14 anos, por ser uma idade correspondente às séries finais do Ensino Fundamental, que inclui  o público alvo do Curso de Letras: Língua Portuguesa e Literatura.
De acordo com Maria da Glória Bordini, em seu artigo - Poesia infantil e transitoriedade do leitor criança - há certos critérios para atender essa transitoriedade. Para o caso em baila, Bordini sugere tanto gêneros formais como os sonetos, como também poemas de formas livres e líricas reflexivas (2009, p.31). Nesse sentido, as formas livres do poema Bolha  e a possível reflexão sobre a questão da efemeridade (bolhas de sabão na infância x bolhas de calo na fase adulta), justificam essa escolha. Para esse comparativo é necessário, segundo a autora, características textuais como riqueza imagética, habilidades como percepção estética dos processos linguísticos artísticos (200, p.32). Nesse sentido, o poema escolhido corresponde às expectativas.
No  entanto, vale destacar, que “o texto não é pretexto para nada”, (1985, Lajolo). Isso significa que o professor tem que se a ter a sua especificidade (análise poética) e relacionar os aspectos estruturais, semânticos e lexicais de forma unitária para não interferir no lirismo de sua concepção.

Referencias Bibliográficas

BORDINI, Maria da Glória. Poesia infantil e transitoriedade do leitor criança. São Paulo: Revista Via Atlântica, 2008. p. 23-33.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. São Paulo: Quíron, 1976.

LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina. Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 52-62.


MEIRELES, Cecília. Ou Isto ou Aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

Literatura Infantil: Bisa Bia, Bisa Bel


Comentário - Bisa Bia, Bisa Bel é uma leitura que difere dos contos de fadas apresentados até então, diante disso, é notório que se trata de uma nova narrativa destinada para um público infanto-juvenil peculiar, não tão “inocente”; basicamente, muitos dos seus leitores se identificam com a personagem principal, Bel, que aprende a se conhecer, a viver com ela mesma, em uma fase de descobertas entre a infância e a puberdade.
Em suma, trata-se de uma história leve, divertida e naturalmente comprometida com discussões do seu tempo, que rege uma reflexão, sem necessariamente doutrinar ou moralizar, por meio de fantasias e realidades temporais diferentes. Temos uma discussão inicial que é a descoberta da Bisa Bia que traz à tona todas as curiosidades e conflitos entre duas gerações. O leitor viaja em uma variedade semântica material e comportamental. Mas além do presente e do passado as perspectivas futuras são inseridas na história, por meio da bisneta de Bel. O interessante de tudo isso, que não se trata de uma discussão de fora para dentro, mas sim, de dentro para fora, que faz todo o diferencial nessa narrativa.

O penúltimo parágrafo da história e os termos sublinhados refletem o clímax desta obra. Nada é de repente, tudo tem uma história e uma perspectiva. Cada tempo tem a sua peculiaridade, mas tem um ser que se molda ou que se sobressai aos desafios de sua época. As mudanças acontecem externamente e internamente, com fracassos e vitórias, pois “não dá para ser a mulher maravilha o tempo todo”. Não há receitas de sucessos, mas reinvenções de soluções. As pessoas são um mosaico atemporal, “uma trança de gente”.

Literatura Infantil: Chapeuzinho Vermelho

Comentários - Na versão de Charles Perrault fica claro que a moral de seus contos era um dos objetivos a serem transmitidos para o público infantil. Nesse sentido, Capuchinho Vermelho é um alerta as ingênuas meninas contra a sedução amorosa. Diferente de muitas versões, o referido conto não tem um final feliz, pois o “lobo malvado” distrai a “linda menina” de chapéu vermelho, engana e devora a vovozinha doente, encena e engole a “pobre criança”. Com isso, percebe-se a rigidez da mensagem moralista, pois, normalmente, ao ler ou ouvir um conto de fadas, atualmente almeja-se um final feliz. Mas, como já vimos os contos também caracterizam os contextos de sua época, no caso os últimos anos do século XVII.
No início do século XIX surge a versão dos irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm. Em comparação com Perrault não percebemos grandes alterações até o momento que o lobo engole a Rotkäppchen. No entanto, nessa história surge o caçador que resgata a vovó e a sua  distraída netinha. O malvado lobo é castigado com uma morte dolorosa. A mensagem moralista se faz presente no cerne da história, que diferente de Perrault, tem um desfecho “mais justo” ao penalizar o lobo mal e contemplar a Capuchinho Vermelho com uma nova chance. A menina elimina a ameaça, por meio da morte do segundo lobo, dando a entender que a lição foi aprendida.
Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque é uma narrativa moderna bem diferente de Perrault e dos irmãos Grimmm, mas só tem sentido por parodiar a versão clássica. O amarelo remete ao medo, característica essa bem explícita na primeira parte da narrativa. Na segunda parte da narrativa surge o medonho lobo, o lobo dos contos de fadas, que alude ao imaginário. Depois, o lobo tornou-se real e o medo se foi. A menina vence o medo, enfrenta o lobo e por um instante os papeis se invertem e quem pode ser comido é o lobo bolo, mas ironicamente a personagem prefere outra opção. Ao contrário das duas primeiras versões, o desenrolar da história não se dá pela desobediência da menina, mas sim, por um desafio inerente a própria personagem, o medo de aventurar-se. Sentimento esse, superado por ela mesma, sem a ajuda de adultos.
Fita Verde No Cabelo, de Guimarães Rosa, também remete o leitor ao clássico Chapeuzinho Vermelho, mas não por suas semelhanças, mas pelas situações opostas. A personagem não é influenciada pelo lobo, que se quer existe explicitamente; ela é dona das suas decisões, opta pelo caminho mais longo. Ao depara-se com o resultado de suas escolhas, a culpa e o remorso a despertam e a remetem a uma posição, em que  a ingenuidade de temer lobos mal não mais se encaixa. As atitudes da menina “engolem” a pobre vovozinha.


Fonte:
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: Teoria e Prática. São Paulo: Ática,1991.
ROCHA, Waldyr Imbroisi. As Várias Histórias de Chapeuzinho Vermelho: Repressão e Moral nos Contos de Fadas. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação Ano 3 - Edição 4 – Junho-Agosto de 2010. Universidade Federal de Juiz de Fora Avenida, São Paulo. 

Literatura Infantil: Cinderela

Comentários - Cinderela é um conto amplamente conhecido, ele traz, em suas inúmeras versões, olhares peculiares de seus autores, mas também, características universais, atemporais, como o amor, o casamento, os conflitos familiares (ciúmes entre irmãos) e a importância que se dá à aparência: pois o que difere a bela princesa da “gata borralheira” é o seu luxuoso traje.
As obras de Perrault e dos irmãos Grimm (escrita mais de um século depois) apresentam distinções interessantes. Em Perrault temos uma moça delicada (por isso o sapatinho de cristal), bondosa, submissa, generosa, valores semelhantes à de uma cartilha de bons comportamentos. A mágica vem da fada madrinha, os trajes são detalhados. Há dois bailes e hora marcada para acabar a magia. Já na obra dos irmãos Grimm os sapatinhos não são de cristal (seda e prata e ouro), há três bailes, a mágica vem da natureza, de um galho de árvore que Cinderela ganhou de seu pai. Os vestidos dos bailes são trazidos por um pássaro que remete à mãe de Cinderela. Não há hora específica para acabar a magia. Além disso, a Cinderela não perdoa as irmãs e elas são drasticamente castigadas com a cegueira, além de terem parte dos seus pés cortados, o que revela outro tipo de conduta moral, em comparação aos outros contos.
Em suma, temos uma história de amor, rivalidade, em que são abordados valores e elementos mágicos. No entanto, o crucial entre estes dois contos é que em Perrault as irmãs são perdoadas e na versão dos Grimm elas são castigadas, creio ser essa a principal implicação em relação aos leitores. No primeiro caso, uma conduta de bom comportamento e sociabilidade e no segundo caso, uma conduta mais rígida, semelhante a um velho ditado: “Quem planta o bem colhe o bem, e quem planta o mal, colhe o mal”. Não existe um meio termo.
Tais diferenças e possíveis efeitos sobre os leitores não são por acaso, pois além do caráter universal e atemporal, os contos também remetem aos contextos históricos vivenciados por seus autores, como cita a jornalista Lívia Perozim na Revista Carta Capital, publicada no dia 17/08/2010:

[...] no século XVII, com o francês Charles Perrault [...], na corte barroca de Luís XIV nascia a noção de civilité e os bons modos eram valorizados. Não à toa, a Cinderela de Perrault usava trajes luxuosos e um sapato de cristal, tamanha sua delicadeza. Já na versão dos irmãos Grimm, a história não tem traços tão nobres. Ao contrário, os autores alemães, que vieram de um ambiente rural e viveram a ocupação napoleônica do século XIX, emprestam uma certa – e talvez discutível – violência ao conto.

Com isso, podemos concluir que os contos de fadas ganharam e ganham muitas versões no decorrer do tempo, porém com propriedades comuns que permitem ao leitor identificar a sua raiz norteadora, tanto quanto, características e preocupações resultantes de sua época. Não é a toa que nos dias atuais, nos deparamos com versões cada vez mais resumidas, talvez pelo caráter imediatista da nossa sociedade.



Fontes:

Textos da disciplina (3ª Semana).

Referência Bibliográfica:


PEROZIM, Lívia. A história dos contos de fada. Entrevista com Kática Canton. Revista Capital, 2010. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/a-historia-dos-contos-de-fada. Acesso em 03 de setembro de 2016.

“A pedra dá á frase seu grão mais vivo”

Análise Literária - O poema “Catar Feijão” de João Cabral de Melo Neto tem 16 versos brancos, distribuídos em duas oitavas. Neste poema, há uma alternância do tamanho do metro, oscilando entre versos eneassílabos, decassílabos, hendecassílabos e dodecassílabos, no entanto, os dodecassílabos são predominantes.  As medidas apresentam casos de elisão (ex. na água v.1) e sinérese (ex. boiará v. 5), conforme a necessidade do metro. As últimas palavras de cada verso são oxítonas (v. 1 ao 5 e v. 15) ou paroxítonas (v. 6 ao 14 e v 16). Em suma, as estrofes são heterométricas.
Os versos não apresentam ritmo homogêneo e não há segmentação rítmica predominante, tampouco, apoio rítmico regular. No entanto, isso não significa que ele não tenha certa sonoridade:
[...] a estrutura do poema baseia-se em figuras de som como assonância e aliteração, no qual o uso das vogais /a/, /e/, /i/, /o/ em todo o poema e da letra /g/ no verso 2, da letra /p/ no verso 7 e das letras /t/ e /fl/ no verso 15 compõe quase uma melodia lírica. Qualquer erro na escolha das palavras incorre em eco: som desagradável que deve ser evitado para que o poema alcance a desejada sonoridade, (CHAVES, 2005).

Quanto às rimas, elas são toantes (semelhança apenas nas vogais) e externas. Quanto as suas disposições nas estrofes, as rimas toantes são cruzadas nos primeiros quatros versos e emparelhadas nos versos 6 e 8; 10 e12 e 14 e 15. Nos demais versos (5 e 7; 11 e 13  14 e 15) não há rimas. Todas as rimas são ricas, a exceção são os versos 6 e 8, pois as paroxítonas “verbo e eco” são da mesma classe morfológica (substantivo). Além disso, há rimas agudas nos versos 1 ao 4 e graves nos versos 6, 8, 10, 12, 14 e 15.
Neste poema, as pausas métricas não correspondem às pausas semânticas, o que observamos são quatro quartetos (na sequência ordinária dos 16 versos). Nesses, vale destacar os enjambement (versos 2/3, 6/7 e 10/11) e as suas contribuições para a sonoridade do poema, (CHAVES, 2005).
Segundo Nelly Novaes Coelho (1976, p. 85), a pausa semântica é “exigida pelo sentido lógico da frase e assinalada também por sinais de pontuação”. Dessa forma, os sinais de pontuação lógicos (dois pontos, ponto, vírgula e ponto e vírgula) estão relacionados com as pausas semânticas. Além disso, esses pontos se repetem a cada quatro versos.
A organização sintática dos períodos que compõe os versos é predominantemente indireta, no que se refere à estrutura frasal sujeito + verbo + complemento. Isso ocorre na maioria dos versos. No entanto, também temos a ordem direta, presente no verso mais instigante do poema: “a pedra dá à frase seu grão mais vivo” (v.14). Vale destacar, que a estrutura sintática do poema é direcionada pela símile (comparação) por meio de nexos lógicos.
Em referência as classes morfológicas, observa-se a predominância de substantivos (em sua maioria, concretos), seguido de verbos. Os adjetivos são pouco utilizados, o que demonstra mais uma característica do estilo do poeta, pois no gênero poema, os adjetivos tem expressiva fluência.
Os verbos estão em sua maioria no infinitivo (catar[4x]/jogar/escrever/boiar/soprar/quebrar), mas também há verbos na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (limita/entra/dá/obstrui/açula/isca), do subjuntivo (entre), do futuro do presente do indicativo (boiará). Já o termo “joga-se” (2x) está  na voz passiva sintética ou pronominal.
O fato dos verbos estarem predominantemente no infinitivo pode remeter a uma peculiaridade do poema, pois “a ação do verbo prolonga-se infinitamente, como se estivesse suspensa no tempo”, (COELHO, 1976, p. 116). O catar feijão pode ser finito, em um determinado momento, mas “escolher as palavras mais preciosas” é algo contínuo, que não se limita ao ato de escrever, pois a palavra em si tem uma infinita representatividade de sentidos, que varia de significados e alcance, entre os seus interlocutores.
Para Nelly Coelho, “Dentre os elementos constitutivos do fenômeno poético que precisam ser conhecidos a priori [...] está o valor representativo das classes de palavras, pois do seu conhecimento depende que se percebam certos valores estilísticos do texto” (1976, p.112). Como já dito, os substantivos concretos estão entre as classes de palavras predominantes no poema, destaque para: feijão, grãos, alguidar, dente, pedra (duros), papel (flexível), água (penetrante). Trata-se de palavras simples, presente no cotidiano e no linguajar da maioria das pessoas, o que dá um ar de realidade, acessibilidade, que foge um pouco do rótulo fantasioso de muitos poemas sentimentalistas.
Quanto ao valor estilístico de substantivos concretos (predominantes nos texto), Coelho (1976, p.121) associa essa opção ao descobrimento de algo novo ou ao redescobrimento de elementos em si desligados das relações ou qualidades normais, como é o caso da comparação entre catar feijões e escolher palavras, por exemplo.
No que se refere ao vocabulário utilizado, pode-se dizer que é simples e conciso. Ele compara o tema do texto com uma atividade corriqueira, porém cheio de significados, que só uma interpretação profunda é capaz de perceber. Se por um lado as palavras são simples, o seu conteúdo semântico é denso.
 Outra característica do texto é o uso de elipses[1]. Em um primeiro olhar, isso pode causar certo estranhamento quanto à organização sintática, mas também revela certa maestria na escolha lexical. Por exemplo, o verso 2 inicia com o verbo jogar (joga-se os...), que se refere aos grãos do verso 2 e as palavras do verso 3, porém, no segundo caso ele suprime o verbo: “e [joga-se] as palavras na folha do papel;”, outro exemplo de elipse se refere à palavra “pedra” nos últimos três versos.  Já, nos versos 6 e 7 não temos a supressão de um termo já mencionado, mas de uma ideia: “[que é] água congelada, por [ser de] chumbo [o] seu verbo: “pois para catar esse feijão, [é necessário] soprar nele".  Essa estrutura sintática gera certa dificuldade, estranhamento para compreender o poema, no entanto, leva o leitor a refletir, a sair da sua zona de conforto de uma leitura mecanizada. 
Quanto aos processos intensificadores presentes no poema, percebermos a reiteração de palavras e expressões, por exemplo, os substantivos: grão (5x), feijão (3x), os verbos catar (5x), jogar (3x) e as expressões catar feijão (v1), catar esse feijão (v7),  nesse catar feijão (v.9). Também percebemos o uso da anáfora nos versos 11 e 12 (um grão).
Outro elemento intensificador no poema é o paralelismo, ou seja, a “repetição de determinada ideia ou pensamento, em versos sucessivos, tendo como resultado a intensificação do seu sentido”,(COELHO, 1976, p.91). Um exemplo são os versos 2 e 3: verbo + complemento + adjunto adverbial de lugar (vale lembrar que temos uma elipse em referência ao verbo jogar no verso 3).
Em referência aos processos imagísticos, podemos afirmar que o poema é de extrema riqueza, é notória a opção pela símile e a metáfora. Obviamente, um poeta como João Cabral não dedicaria o seu tempo para escrever sobre catar feijões sem uma relação sensata, por isso, ele usa esse gesto simples e concreto para falar de algo engenhoso e abstrato (ato de escrever). Nesse sentido, os elementos imagísticos do poema já iniciam com o título, que revela, como diria Coelho (1976, p. 60), a abertura de um caminho para a compreensão do núcleo ideativo do poema. No caso de Catar Feijão, o título é a metáfora chave do fazer poético.
Conforme Chaves (2005), o autor empresta ao eu-lírico a possibilidade de criar um paralelo entre a simplicidade de catar feijão e a complexidade de escolher palavras na elaboração de um poema:
[...] isso está explícito no primeiro verso: Catar feijão "se limita" como escrever. Ao mencionar a palavra “se limita” ele cria uma proximidade comparando e salientando as diferenças entre os dois atos valorando-os, por exemplo: o elemento imprestável encontrado no catar feijão terá valor diferente no ato de escrever, (CHAVES, 2005).

Também vale reforçar, que o primeiro termo da comparação é o ato de catar feijão, uma atividade braçal, o segundo, é o ato de escrever, uma atividade intelectual. Mas como comparar duas atividades aparentemente tão antagônicas? Bom, surge nessa aproximação, o primeiro “choque”, reflexão que o eu-lírico transmite ao leitor, por meio dessa símile. Nesse sentido, o leitor pode se perguntar: o que esses dois atos tem em comum? A resposta dá o tom do poema: a capacidade de escolher.
Ao observar a organização sintática, a seleção lexical e os tempos e modos verbais utilizados no poema, podemos dizer que se apropria de um tipo textual argumentativo que expõe semelhanças e diferenças que entre o ato de catar feijão e o de escrever, como defende Rocha:
As duas estrofes ou partes do poema são ligados por um continuum lógico, através da conjunção “ora”, de valor ilativo, pois introduz um conclusão que revela a diferença fundamental. Calçada nas similaridades e dessemelhanças entre um ato (o de catar feijão) e outro (o de escrever). Cada uma das metades do poema pode, por sua vez, ser divididas em duas semi-partes, com quatro versos, (ROCHA, 2008, p. 296).

As semipartes citadas por Rocha apresentam a seguinte estrutura argumentativa:
1ª semi-parte: A cata é similar à escrita: jogam-se e catam-se na água como no papel.
2ª semi-parte: É certo que a escrita difere num ponto de cata: nela todas as palavras ficam na superfície. Na escrita, portanto, deve- se não catar no fundo a palavra, como se faz na cata do feijão, mas soprá-la na superfície.
3ª semi-parte: Ora, na cata há um risco, o grão duro que pode afundar e se confundir entre os grãos bons.
4ª semi-parte: Certamente não há risco na escrita, pois como todas as palavras ficam na superfície, e são por isso sopradas, desejam-se justamente as mais duras, pétreas, (ROCHA, 2008, p. 296).

Sobre o conteúdo do poema, é plausível destacar que as atividades/procedimentos em comparação se diferenciam em seu conteúdo semântico. A palavra “pedra” (v. 11 e 14), por exemplo, na segunda estrofe tem dois significados diferentes e essenciais para o entendimento do poema. O primeiro significado remete ao risco indesejável de encontrá-la entre os grãos bons e contrasta com o seu segundo significado, que remete a algo precioso e essencial que incita o leitor a mergulhar no texto.
Os versos 7 e 8  trazem os termos  “esse feijão”, “leve”, “oco”, “palha” e “eco” mergulhados em uma linguagem conotativa, que leva o leitor a refletir sobre a necessidade de eliminar da escrita às palavras superficiais, vazias, que não acrescentam o sentido do texto, que lá estão como mera alegoria. Além das palavras vazias, o sujeito poético despreza os ecos, que a seu entender, denota sujeira/poluição sonora.
Dando sequencia a lógica argumentativa do poema, surge no verso 15 às palavras "fluviante" e "flutual", que induz a uma imediata estranheza por parte do leitor que, no mínimo, o leva a reler o verso. Tais termos, neologismos dos adjetivos flutuante e fluvial, são utilizados para uma reflexão sobre uma leitura fácil, supérflua, ordinária. A palavra “pedra” (v.14) e toda a sua carga semântica vem obstruir essa fluidez e oportunizar uma quebra de paradigmas, proporcionar uma provocação, que remete e obriga o seu interlocutor a sair da inércia, o que vem de encontro, com o sentido dos versos 7 e 8, citados anteriormente.
Retomando as observações sobre os verbos, nos versos 14, 15 e 16 eles têm como sujeito a “pedra” (que dá a frase o seu grão mais vivo).  Assim sendo, a pedra obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção para o texto e isca/provoca o leitor ao risco de explorar a pedra mais preciosa da leitura. Vale destacar, que os dois últimos versos empregam três verbos transitivos diretos (obstrui/açula/isca) de forma gradativa para finalizar a lógica argumentativa e reflexiva do poema.
O termo “risco”, do último verso, tem um tom provocativo e levemente irônico, que remete a aventura de romper o tradicional e aprofundar-se na leitura, encontrando dessa forma, novos sentidos para as palavras e para os seus receptores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao observar os aspectos que integram o processo poético, podemos dizer que ele põe em prática o procedimento prescrito para catar palavras, pois se trata de um poema com conteúdo semântico provocador, com escolhas lexicais que condizem com a sua mensagem, Nesse sentido, nem um termo é supérfluo ou insignificante. Os aspectos conotativos e denotativos não competem entre si, mas se complementam, tanto no material (feijão), quanto no ideal (palavras). Percebemos uma escolha arquitetada das palavras, expressões, posições, etc.
Assim sendo, só resta afirmar que foram catadas as melhores palavras para a composição deste poema, pois Cabral é um poeta coerente, racional, objetivo, conciso sem abrir mão do gênero lírico. Em Catar Feijão, ele reafirma o seu estilo e empresta ao eu-lírico a possibilidade de uso dessas linguagens para constatar uma realidade do cotidiano, como um parâmetro para alcançar o objetivo da construção do texto, onde a pedra modifica o “fluvial e flutuante”, (CHAVES, 2005).
Como destacou Carlos Felipe Moisés, Cabral cria uma nova expressão poética externa, sem sentimentalismos comuns, rompe os clichês e constrói uma obra coerente e centrada (1996, p. 152). Não são poemas fáceis e nem poderiam ser, pois ele sabe catar palavras e leitores.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHAVES, Regina. A poesia de João Cabral de Melo Neto. Blog: Pensamento e Lógica. Cascavel/2007. Disponível em: http://pensamentoelogica.blogspot.com.br/search/label/poema%20catar%20feij%C3%A3o. Acesso em 18 de novembro de 2016.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. São Paulo: Quíron, 1976.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poema não é difícil. Introdução à análise de texto poético. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996.

OLIVEIRA, Dudu. Análise de textos literários. Recanto das Letras. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1631117. Acesso em 15 de novembro de 2016.

ROCHA, Francisco José Gonçalves Lima. Representação e prática da criação literária na obra de João Cabral de Melo Neto. Análise textual e prototextual. 2011. 296-300 p. Tese (Doutorado em Literatura em regime de co-tutela) – Universités Paris 8 – Vincennes-Saint-Denis e Universidade de São Paulo, Paris e São Paulo, 2011.

FONTE

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. A Educação pela Pedra 2ª. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973.

MONFARDINI, Adriana. Roteiro da disciplina de Literatura brasileira lírica. 5ª fase do Curso de Letras: Língua Portuguesa e Literaturas. Polo de Agudo. Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Aberta do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2016.






[1] Figura de sintaxe que omite um termo ou oração que podemos subentender ou elimina termos supérfluos em prol de um texto enxuto. 

Sobre a Morte (Literatura Lírica)

“Foi poeta – sonhou – e amou na vida”

Comentários - O poema “Lembrança de Morrer” de Álvares de Azevedo é bem definido quanto a sua forma. Nesse sentido, é composto por 12 quartetos decassílabos, a exceção é o quarto verso, um hexassílabo. As rimas perfeitas aparecem em todos os versos pares, por exemplo, vivente/demente; vento/passamento; consumia/embelecia e minhas/definhas. Vale destacar, que nas estrofes seis e sete, o primeiro e o terceiro verso apresentam rimas toantes: amigos/endoudecido; inunda/nunca.
No que se refere ao sentido do texto, já no primeiro verso o sujeito poético  apresenta a possibilidade da sua morte, que rege o tom melancólico de todo o poema. No verso nono até o 14, o eu lírico ressalta a forma como vai deixar a vida: “a fuga do tédio de uma alma errante consumida pelo fogo insensato”. Mas, ele não vai sozinho, pois carrega as saudades (versos 15 a 24) de seus pais e as belas ilusões de tempos que não voltam mais.
Tão intangível quanto o tempo que se foi, é a mulher para o sujeito lírico. Como mais um desejo, ela é caracterizada como um ser amado, cobiçado, mas também intocável e inacessível, pelo menos na vida real, pois em seus sonhos, o sujeito poético nutre a esperança do gozo desse amor (oitava estrofe).
Nas duas últimas estrofes, o poema traz uma invocação à natureza, nesses versos a figura de linguagem personificação predomina. O eu lírico pede, por exemplo, a proteção do seu corpo para as sombras do vale e para as noites da montanha e a abertura dos ramos dos arvoredos do bosque para que a luz da lua ilumine a sua lousa (túmulo). 
Nesse sentido, a morte para o sujeito lírico não alude a um desespero, mas a uma atmosfera de aconchego e consolo pós-morte. Sendo assim, é evidente a linguagem melancólica e a morbidez que rege o tom do poema, tanto que o  sujeito poético escolheu a inscrição para o seu próprio túmulo (título dessa análise).


“Morrer! morrer! Soluça-me implacável”

Comentários - O poema “Mocidade e Morte”, de Castro Alves é dividido em 14 estrofes, que são alternadamente compostas por oitavas e dísticos. Todos os versos são decassílabos. As rimas obedecem ao esquema ABCBDEFE (alternadas e mistas) GG (emparelhadas). Além disso, todas as rimas são perfeitas e graves e alternam-se em pobres e ricas. Nos versos 9 e 10 encontramos esquema rítmico heroico e sáfico, respectivamente.
 No decorrer do poema, há um diálogo entre o eu lírico que fala nas oitavas e uma voz que lhe retruca nos dísticos. O sujeito poético se refere à vida e a voz a morte.
Na primeira estrofe, vale destacar a metáfora como a figura de linguagem predominante, assim como a comparação nos versos 3 e 4 entre alma e branca vela (metonímia de barco). Nos versos seguintes, também observamos essa figura de linguagem: verso 10: sono/morte; verso 11: mundo/paraíso; verso 12: alma/cisne; verso 13: seio/lago virgem; verso 15 e 16: mulher/camélia; verso 17 e 18. alma/borboleta. Nesse sentido, as metáforas tem função de descrever o prazer e o apego pela vida, assim como o desprezo pela morte.
Outro elemento frequente é a repetição de algumas palavras, como: alma, vida (viver), morte (morrer), mulher, amante, seio, beijos, adeus. Também temos repetições sequenciais no mesmo verso: O futuro... o futuro (v. 25); Morrer! Morrer!(v. 60); e repetições sintáticas: Morrer – é ver extinto... ( v. 31); Morrer – é trocar astros... (v. 35). A reiteração nesses casos tem a função de dar ênfase a uma ideia ou a um sentimento.
O poema como um todo remete a uma antítese entre “desejo de vida” e “prenúncio de morte”, como fica bem evidente nos versos 47 e 48, além disso:
O jogo de antítese estabelecido entre a mocidade e a morte no poema parece compor uma segunda antítese entre as ideias de legado e morte. A mocidade, cheia de vigor, vislumbra um futuro de glórias e anseia a construção de um legado, enquanto que a morte está para lembrar que a mocidade chega ao fim, que os “beijos da mulher” serão fatalmente trocados pelos “da larva errante no sepulcro fundo” e que o futuro de qualquer um, malgrado legado, é ser esquecido (BERETTA, 2014, p.117).
O poema está todo perpassado por uma estrutura e uma semântica dual que envolve o sujeito poético em relação à vida e a morte, ele:

[...] não só conhece a vida, como contempla os seus prazeres e a eternidade – “o sempre noite”. Os prazeres são sentidos e lamentados diante da voz que, compondo uma espécie de refrão durante o poema [...] apontam para o fim inadiável e irremediável, para a vida de prazeres curta e passageira, (2014, p.116).
CONCLUSÃO

Após analisar esses dois poemas, percebemos que Lembrança de Morrer prima pelo sentimento de melancolia. Nele o sujeito lírico encara a morte em uma atmosfera sedutora, tanto, que todas as suas invocações à natureza são para um momento pós-morte, o que remete a certo consolo, aconchego. Já o poema de Castro Alves, a morte é contraposta ao seu desejo de viver, há um evidente drama em relação à hora da despedida.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BERETTA, Laysa L. S. O gênio romântico e a imortalidade: análise de “ Ahasverus e o Gênio” e “Mocidade e Morte” de Castro Alves. Revista Estação Literária, volume 12, páginas 107 a 122. Londrina: Universidade Estadual de Londrina (UEL), 2014.


MONFARDINI, Adriana. Roteiro da disciplina de Literatura brasileira Lírica. 5ª fase do Curso de Letras: Língua Portuguesa e Literaturas. Polo de Agudo. Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Aberta do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2016.

Os beijos que não tive ...

Comentário - O remorso é um recordar doloroso de algo imutável, é um lamento perpétuo de uma ferida que não se cura, para expressá-lo, é necessário autoconhecimento, pois se trata de um sentimento ímpar, inerente a cada indivíduo e indissociável a sua alma.
No poema Remorso, de Olavo Bilac, o sujeito lírico compartilha em um clássico soneto (dois quartetos e dois tercetos, decassílabo, com rimas intercaladas,  esquema rítmico heroico[1] e sáfico[2]) tais sentimentos, que levam o leitor a reviver a dor e o arrependimento do seu emissor.
Neste texto, tão rico quanto às rimas é a cuidadosa escolha lexical, o uso de encadeamentos sintáticos para preservar a métrica dos versos e de processos imagísticos como a oposição entre as metáforas outono e primavera (presente e passado).
Tais momentos do passado e do presente tecem o mais profundo sentimento de arrependimento pelos amores não vividos e pelos versos não falados, de um homem sem gozo e de um artista abortado. 
Junto com o arrependimento, surge a tentativa de justificativas vazias. No entanto, bem sabe o sujeito poético que renúncias por conveniências ou por valores não diminuem a dor dos sacrifícios, pois o remorso é um fim, cujos meios não o amenizam.
Assim sendo, só resta ao sujeito lírico mergulhar em versos tristes, em uma dor que lhe desespera (v.1), lamentar os beijos que não teve (v. 12) e desejar “Mais viver, mais penar e amar cantando!”, (v. 8).




[1] Nos versos 1, 2, 4, 8, 9, 10, 11, 12, 14.
[2] Nos versos 3, 5, 6, 7, 13.

“Assim moro em meu sonho” (Devaneio)

Análise Literária - Para Nelly Novaes Coelho, há quatro aspectos que integram o processo poético: os elementos estruturais da linguagem poética, os processos intensificadores, os processos imagísticos e a natureza das classes de palavras (1976, p. 61). Tais aspectos podem ser analisados separadamente, mas sem perder a visão global do poema de Cecília Meireles, “Assim moro em meu sonho”.
Em referência à forma (elementos estruturais), o poema apresenta cinco quadras, ao total são 20 versos isométricos hexassílabos, ou seja, trata-se de uma métrica regular, com seis sílabas métricas em cada verso. Predominam dois esquemas rítmicos: 3 – 6, como na primeira estrofe e 2- 4 e 6 como nos versos 11, 16, 17 e 18. Entre as rimas, as externas são notórias nos versos pares de cada estrofe.
Sobre as classes de palavras, percebemos que os verbos que norteiam o poema estão na primeira pessoa, assim como os pronomes possessivos, o que denota um posicionamento pessoal do sujeito poético. Nessa lógica, destaco os termos “meu sonho e meu olhar” cuja semelhança sintática reforça o seu conteúdo semântico, pois o olhar sugere uma ligação entre os dois mundos do eu lírico, o interior (sonhos), e o exterior (realidade).
Dentro dos processos imagísticos, o poema apresenta muitas metáforas, na primeira sentença, por exemplo, a comparação “moro em meu sonho:/ como um peixe (mora) no mar” alude ao ambiente natural do peixe e do sujeito lírico e remete ao sentido principal de todo o poema, pois o mar é crucial para a sobrevivência do peixe, da mesma forma que o sonho é para o sujeito poético. Ainda nesses versos, vale destacar que o verso 2 é uma continuação do verso 1 (enjambement), pois os versos são ligados pelo sinal de dois pontos[1] que indica o início da referida comparação (símile) entre sonho/poeta e mar/peixe.
De acordo com Coelho, “o significado poético latente em um poema pode ser realçado ou intensificado de vários modos” (1976, p.87), por meio de “reiteração, anáfora, aliteração, onomatopeias, eco, paralelismo, refrão” [...] (1976, p.61), mas também por meio de oposições semânticas.
Uma dessas oposições é visível na segunda estrofe. Nos versos cinco e seis, o sujeito lírico alude à água com o seu corpo, a água remete ao mar da primeira estrofe que significa o sonho do sujeito poético. E este sonho é a sua “verdadeira” alma (v.7), algo intangível que se contrapõe à materialidade de um corpo e reitera a sua alusão ao sonho, algo abstrato e prazeroso. Outra oposição, porém com sentido semelhante, é entre sentir (concreto) e pensar (abstrato). O sujeito poético sente aquilo que ele pensa (v.8). Dessa forma, fica evidente a oposição semântica e a fusão entre corpo X alma e sinto X penso.
Já nos versos 11 e 12, o ponto de interrogação reforça o questionamento do sujeito lírico enquanto à sua relação com o mundo. Esta oposição denota uma incerteza em relação ao lugar do eu poético no mundo - por um lado o mundo o envolve e por outro, ele envolve/contorna o mundo.
Recurso semelhante (oposição/fusão), observamos nos versos 13 e 14, por meio de expressões temporais: “Não é noite X nem dia; não é morte X nem vida”. Em suma, observamos uma dupla negativa, uma oposição direta entre os termos que ocasiona uma situação de incerteza em relação ao tempo, ao espaço e a própria existência.
Essa incerteza não é por acaso, pois se trata de uma sensação que as pessoas normalmente experimentam quando sonham. As expressões espaciais no verso 16 (É (viagem) sem volta X nem partida) vem reiterar essa sensação em relação ao espaço, pois sugere uma improbabilidade em relação à localização, pois logicamente não tem como apontar um lugar/espaço sem volta ou partida.
As oposições acima acentuam as fusões de opostos no poema: material-espiritual, mundo-sujeito, noite-dia, volta-partida, assim como no primeiro verso: “assim moro em meu sonho”, cuja atmosfera remete a uma fusão entre a vida real e o sonho.
O sonho é o plano de fuga do mundo real pelo sujeito poético, é uma busca por liberdade, por isso, a última estrofe inicia com o vocativo “O céu da liberdade”. Tal termo sugere um anseio do sujeito lírico por se afastar da causa do seu sofrimento, obviamente esse sentimento doloroso não é em um mundo idealizado, de sonhos, logo se trata da vida real. Porém, como se libertar da vida real? Isso só é possível em um mundo imaginado ou mais extremamente com a própria morte.
A fuga do mundo real e a opção pelo mundo dos sonhos libertador é o que justifica o devaneio no poema. Em outras palavras, o sujeito lírico procura se libertar de uma realidade concreta que ocasiona seu sofrimento e prefere viver em um mundo alternativo, cuja essencialidade lhe proporciona certo prazer, por meio de um olhar profundo em seu interior.

Referência Bibliográfica
COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. São Paulo: Quíron, 1976.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

Fonte
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1985.
MONFARDINI, Adriana. Roteiro da Atividade III. Disciplina: Literatura Brasileira Lírica, Capítulo: Devaneio. Santa Maria: UFSM/UAB, 2016.



[1] Recurso semelhante é usado na quinta estrofe.