terça-feira, 11 de julho de 2017

Teoria do Medalhão e o Amor

 A pesquisadora em Literatura, Lúcia Helena (2015, p.180) destaca que Machado de Assis e Clarice Lispector “trabalham seus personagens revelando-nos seres em solidão, guiados pela ponta dos dedos de uma escrita abrasiva, em uma narrativa que rasura, no fundo e na forma, algumas plataformas de uma estrutura social [...]”. Nos contos “Teoria do Medalhão” e “Amor”, tais características também são evidentes, tanto na crítica capitalista burguesa de Machado de Assis, como na inércia e nas indagações da personagem Ana, de Clarice Lispector.
O mundo urbano carioca em "Teoria do Medalhão" tem características históricas e contextuais da sociedade próprias de sua época, assim como estruturas narrativas e linguagens peculiares, próprias de um diálogo. A figura paterna em Machado de Assis apresenta um mundo capitalista, individualista, patriarcal, estratégico, no sentido de não entrar em polêmicas ou discussões para estar acessível ao maior número de vantagens que levaria a um futuro promissor (Medalhão); tal visão de mundo tem como fundo uma crítica reflexiva que só será acessada por um leitor com perspectiva semelhante.
Em resumo, a Teoria do Medalhão mostra o reflexo de uma sociedade que se moldou às perspectivas das melhores vantagens (pessoais, sociais, políticas, econômicas...). Trata-se de um mundo urbano planejado, articulado, racional e de uma linguagem ousada, e sensível ao retratar algo que dialogue com o homem do seu tempo, de uma forma indireta e seletiva. O conto não deixa de ser uma grande provocação, pois ao mesmo tempo em que pai desaconselha o uso de ironias, porque tal atitude é própria dos “céticos e desabusados”, ele cita O Príncipe. Essa aproximação tem uma evidente inversão de valores, ao comparar a finalidade das regras, moralmente questionáveis, entre as duas obras, visto que a Teoria do Medalhão trata-se de interesses pessoais e o livro de Machiavel, interesses estatais. Esse paralelo é em essência uma grande ironia no conto.
O conto Amor de Clarice Lispector traz muitas informações nas “entrelinhas”, a autora explora o “dito no não dito” e revela não só um enredo profundo como dialoga com leitores de todas as épocas, sem perder a sua atualidade, por meio de alguns recursos metafóricos e pela sensibilidade de traduzir a essência humana.
Em um primeiro momento, o narrador onisciente revela uma mulher envolvida em seu próprio mundo de esposa, mãe e dona do lar. No segundo parágrafo é notória uma comparação entre o que circunda a personagem e ela própria, ou seja, tudo em sua volta cresce, mas Ana permanece pequena. Uma evidência disso é a comparação com um lavrador, pois seu propósito é servir de instrumento para que os seus frutos cresçam.
Enfim, inicialmente temos uma personagem acomodada em sua realidade, insegura, frágil, onde a felicidade não importa mais que o dever cumprido. Ela se firma no palpável, no regrado e evita ou foge do abstrato.  Essa “zona de conforto” é posta em prova quando ela se compara a imagem do “outro”, no caso, a figura do cego, e isso só é possível fora da sua redoma de vidro (casa/privado), em um espaço desconhecido e desafiador, que vai além de suas convicções (o bonde/público).
No conto de Clarice Lispector, existem acontecimentos que ocorrem ao redor de Ana e os que ocorrem somente no seu pensamento. Por exemplo: “Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. [...] Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe a garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada” (LISPECTOR, 1998, p.16). Apesar de ser uma mulher convencionalmente livre, Ana é refém das suas obrigações familiares e ao comodismo que esse papel representa. O interessante, é que esse fato não é aparentemente errado, mau ou gerador de infelicidade, mas é limitante, e isso é que a faz refletir quase que por acaso ao deparar-se com o cego e o Jardim Botânico.
Nesse sentido, a personagem está presa em seu contexto familiar, enquanto há um mundo amplo e desafiador, com sensações inéditas e com sentidos jamais explorados. No entanto, ela enxerga sua casa/prisão como algo seguro, onde não precisa ter maiores preocupações e comprometimentos, além do seu conveniente papel de mãe e esposa dedicada.
No entanto, por mais que haja uma inquietação interna, Ana chega ao seu mundo (casa) diferente, tudo está igual, mas ela não, pois foi despertada pela “cegueira”. As suas indagações transcendem o conto e também dialogam com os leitores.


OUTRAS CARACTERÍSTICAS

Os contos apresentam poucos personagens e uma estrutura diferenciada. Em Teoria do Medalhão, o autor opta por não usar um narrador e sim um diálogo entre pai e filho, na casa da família, uma hora antes do filho completar 21 anos. Trata-se de uma estrutura baseadas em cenas, cujo tempo literário procura se assemelhar ao tempo real.
O conto Amor apresenta um narrador onisciente em 3ª pessoa. O tempo da narrativa também é curto, inicia em um bonde, passa por uma breve parada no Jardim Botânico e se encerra com a chegada de Ana em seu lar. Nesse conto, o narrador, que não participa da história, também faz uso de uma analepse temporal (2º ao 5º parágrafo).
Em relação ao título, o medalhão é um objeto que se usa próximo ao peito e contempla duas faces, uma, geralmente bela e preciosa, a vista de todos e outra bem diferente, junto ao corpo.  Isso demonstra uma dupla aparência e significa que nem sempre o que os outros vêm é o que mais se aproxima da pessoa. Trata-se de uma possibilidade metafórica que condiz com a sua época de produção, pois o texto, contextualizado no século XIX, faz uma ponte e uma crítica direta com a sociedade burguesa da época, como já mencionado, porém, sem perder a essência reflexiva para os dias atuais.
Já o título Amor, é amplo, indireto e intrigante, pois ele pode se relacionar tanto ao amor ao próximo, ao se comparar com o cego, mesmo no sentido metafórico, como ao amor familiar (entrega e dedicação). As possíveis definições de amor, também, podem ser apontadas como um questionamento indireto entre a autora e o leitor.
Vale destacar, que Lispector vivenciou o fim da democracia nacionalista da República e o início da ditadura no Brasil (SEIDEL, MADEIROS, 2014, p.3), assim sendo, a alienação familiar e a opção por um “mundo perfeito”, sem grandes problemas ou compromissos sociais permeiam um pano de fundo neste conto, assim como a submissão da mulher aos deveres domésticos, e a própria falta de liberdade, característica dessa época. Ana não é uma grande heroína, mas é uma mulher comum, mergulhada em seus conflitos e desafios, como tantas outras, em todos os tempos.

Depois de refugiar-se no Jardim Botânico entre plantas e bichos, observa aquele mundo natural, instintivo, sem regras, com um misto de fascínio e nojo. Ela sabe que jamais enxergará a vida da mesma forma, mas volta correndo para casa, agarra-se ao filho, recebe visitas, dá ordens à empregada, retoma sua rotina doméstica e previsível. (PAJOLLA, 2019, p.39)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ASSIS, Machado de. Teoria do Medalhão. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf. Acesso em 25 de maio de 2017.

HELENA, Lucia.  Três momentos do desassossego na literatura brasileira: Machado, Lispector E Noll. Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.6, Número 3, setembro-dezembro, 2015. Disponível em: http://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/2208/pdf_437. Acesso em 06 de junho de 2017.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família: Amor. Editora Rocco, 1998. Disponível em: https://ead08.proj.ufsm.br/moodle2_UAB/pluginfile.php/206974/mod_resource/content/1/Clarice_Lispector_-_Lacos_de_Familia.pdf. Acesso em 30 de maio de 2017.

PAJOLLA, Alessandra Dalva de Souza. Identidades femininas múltiplas em crônicas de Clarice Lispector. Maringá: UEM, 2010. Disponível em http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/adspajolla.pdf. Acesso em 06 de junho de 2017.


SEIDEL, Vizette Priscila; MEDEIROS, Karla O. Armani. Os Jogos Sociais em Machado de Assis e Clarice Lispector. Barretos: Unibarretos, 2014. Disponível em: http://revistadigital.unibarretos.net/index.php/historia/article/view/34/36. Acesso em 06 de junho de 2017.


FONTE

REGINATTO, Andrea. Roteiro de orientação da Tarefa 2. Disciplina: Literatura Brasileira Narrativa. Santa Maria: UFSM/UAB, 2017. Disponível em: https://ead08.proj.ufsm.br/moodle2_UAB/mod/assign/view.php?id=157008. Acesso em 01 de junho de 2017.


SANTOS, Pedro Brum. Roteiro da Atividade 4. Disciplina: Literatura Brasileira Narrativa. Santa Maria: UFSM/UAB, 2015.

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