terça-feira, 11 de julho de 2017

Boi Velho e o Gauchismo

O conto O Boi Velho fala da história de dois bois, Dourado e Cabiúna, pertencentes a uma família de estancieiros e “mui políticos”, composta por homens, mulheres e crianças (patrões e peões). A história humaniza os animais e de certa forma, animaliza o homem, e provoca uma reflexão que explora sentimentos universais banhados em peculiaridades regionalistas.
Em síntese, em dias de verão, os bois da Estância dos Lagoões puxavam em carretões as crianças e as senhoras-donas para se banharem em um arroio próximo a sua moradia. Esse costume campeiro era motivo de alegria para as crianças e maestria para os bois. Com o tempo, os “miúdos” cresceram, os dias passaram e Dourado não chegou a ver a entrada de certo inverno. Com a morte do amigo, Cabiúna sofria, e berrava de saudades. Não demorou muito para que o boi velho sentisse o fardo dessa ausência e da solidão. Abatido, magro e quase sem forças, os seus senhores, que cresceram usufruindo dos seus serviços, resolveram mandar sacrificá-lo.  De um lado, o bicho sofrendo por perder um amigo, do outro, o homem preocupado em não perder dinheiro. Entre tantas perdas, quem não perdeu o bom senso foi o narrador-personagem.
Blau Nunes não participa diretamente da história, mas dela tudo sabe, inclusive dos sentimentos mais íntimos das personagens. No entanto, como se trata de uma lembrança de um causo que ele viu, logo se supõem que de certa forma ele vivenciou tal episódio. O fato de não participar diretamente da história não significa que não participa do conto, pois a sua presença, principalmente em relação ao seu interlocutor “indefinido” é bem clara.
O narrador inicia o seu relato com uma expressão de espanto e com uma tese: “Cuê-pucha!... é bicho mau o homem”[1]. Logo, na sequencia, interpela o seu interlocutor e se inclui no discurso: “Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!”. Nessas primeiras frases, além da presença do narrador e do interlocutor, é notória a opção por uma linguagem oral[2], coloquial, ou seja, um vocabulário dialetal da região, inclusive com expressões populares e de época antiga (vancê, mui, alçou, etc.) que irá selar todo o conto.
Segundo Bordini (1973, p. 70), o narrador, também qualifica as personagens[3]; narra linearmente (cronológica); usa pausa com ênfase ou indício; usa linguagem gestual (transcrita)[4]; sublinha a narração com exclamações e também faz suposições sobre as personagens[5]. Todos esses apontamentos estão bem claros no texto.
De acordo com Luiz Nunes (1973, p. 41 e 42), as personagens são descritas por meio de características físicas ([...] era baio; o outro[...] era preto...); de aspectos da personalidade (Cabiúna [...] era mui companheiro, [...] eram pais da paciência); de aspectos morais, no caso, o juízo pessoal do narrador/personagem (...é mesmo bicho mau, o homem); de atitudes peculiares, comportamentos habituais ([...] quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo que estavam encostados no cabeçalho [...]). Ainda conforme o escritor, a descrição (adjetivação) do conto também se dá por meio da narração de atitudes, ações e palavras das personagens, que constituem a ação do relato propriamente dita.
As personagens principais sãos os bois, sendo Cabiúna o protagonista, e as pessoas envolvidas em sua morte são os antagonistas. O antagonismo se refere a um tipo de atitude da humanidade, presente na família gaúcha dos Silva. Vale ressaltar, que apesar de Cabiúna ser um bicho, ele comunga de sentimentos universais inerentes ao homem, como a tristeza e a saudade.
O ambiente campeiro (arroio, mato, peral, areia, árvores frutíferas, etc.) é descrito no início do conto de forma peculiar ao ambiente rural. Nota-se, em relação ao discurso, que quando o narrador diz que a estância era como “aqui e o arroio” certa aproximação entre ele e o interlocutor em tempo e espaço.
O ambiente social, no caso familiar, reitera os costumes do campo, onde o homem era responsável pelo sustento da casa e as mulheres cuidavam dos afazeres domésticos e das crianças. Tanto os aspectos geográficos como os sociais servem de artifícios para fazer crer que o mundo narrado é possível. Também colaboram para a verossimilhança, as atitudes humanas exploradas no conto, como o inconformismo de Blau Nunes com a maldade dos homens e a própria cobiça destes. Trata-se de sentimentos, aspectos psicológicos explorados no mundo fictício e vivenciados no mundo real. Dessa forma, o conto ganha um tom de veracidade sem abdicar da literalidade, aspecto esse, que contempla toda a obra Contos Gauchescos.

A FIGURA DO GAÚCHO
Por trás dos acontecimentos, Simões Lopes Neto mostra os valores do gaúcho através dos costumes do campo (os carretões puxados por bois) e por meio dos juízos de valores do narrador-personagem. Como já dito, Blau fica espantado com o desfecho que os homens deram ao animal, a ponto de concluir que o bicho da história era o homem.  Nesse sentido, o narrador-personagem apresenta características pessoais conferidas ao homem gaúcho, como a honra, a valorização dos animais, a indignação com a cobiça.
O tipo de discurso usado pelo narrador, como um homem decidido, crítico, honroso, etc., também se assemelha a caricatura gaúcha. A história da morte do boi, não foi um simples causo, foi algo que marcou a sua vida (“Olhe, nunca me esqueço dum causo que vi” [...]). Assim sendo, Blau faz questão de se posicionar, como vimos nas duas últimas frases do conto, que inclusive reitera o início do texto e confirma a sua tese. O discurso foi construído para que o interlocutor se convencesse que bicho mau é o homem.

A MORTE DO GAUCHISMO?
Por um lado, o típico gaúcho é caracterizado no narrador personagem, Blau Nunes, por outro, a família Silva, que também é gaúcha, transmite uma nova percepção do homem campeiro.
ZIBERMANN (1973, p. 36) destaca que os Contos Gauchescos expressam a cisão temporal entre o passado (carregado de positividade) e o presente. Para a autora, esse passado, caracterizado enquanto um sistema econômico, social e ideológico foi perdido. A explicação para esse rompimento parece em Boi Velho. Segundo a autora, os Silva, responsáveis pela morte do boi Cabiúna, desvalorizam os momentos vivenciados com o boi, o que vem contrariar o código proposto na obra:
No fundo deste ato, está, pois, um gesto mais definitivo: eles provocam a ruptura da solidariedade entre o homem e o animal, resultante da visão sacralizada e mítica com que os indivíduos agem e se posicionam diante do mundo natural, (ZIBERMANN, 1973, p.36).
Tal ruptura, justifica Zibermann, se dá porque os Silva pertencem a uma outra época, a uma nova classe e a um tempo de paz:
Por sua vez, os Silva pertencem a um outro tempo, porque eles não se caracterizam como guerreiros, mas como políticos [...] Suas atividades não são militares, nem aventureiras, como as do autêntico gaúcho da época da conquista bélica, e sim partidárias, própria a um tempo de paz. [...] Instaura-se a paz, e com ela sobrevêm o político e a morte da tradição. Realidade presente de João Simões, velhice de Blau Nunes, os Silva representam a instalação de uma nova era e a morte do gauchismo, (idem, 1973, p.36).

Com isso, é possível concluir que “O Boi Velho” vai muito além de uma reflexão sobre os costumes campeiros ou as atitudes humanas; o conto indaga o papel da pessoa gaúcha, o seu lugar em uma “sociedade de paz”, os desafios da sua época e a sua própria identidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BORDINI, Maria da Glória. Atuação do Narrador. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).

NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos: Trezentas Onças. 9ª ed. Globo: Porto Alegre, 1976.

NUNES, Luiz Arthur. Uma tipologia de personagens. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).

ZIBERMANN, Regina. Presente e Passado nos Contos Gauchescos. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).




[1] Todas as citações de trechos do conto se referem à obra Contos Gauchescos, 1976, p.26 e 27.
[2] Evidenciado por meio de inversões na frase, pontilhados, exclamações, reticências e travessões.
[3] Exemplo: “Eram dois pais da paciência, os dois bois. [...] Cabiúna, era preto, com orelha...”.
[4] Exemplo: “E ajoelhou ... e caiu... e morreu”.
[5] Exemplo: “Cá pra mim o boi velho – uê! Tinha caraca grossa nas aspas! ...”.

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