terça-feira, 11 de julho de 2017

Sequência: elementos básicos da narrativa

O conto Sequência de Guimarães Rosa tem como temática principal o amor. No entanto, o leitor só vai concluir tal enfoque no final da narrativa. O enredo é curto e resume-se na fuga de uma vaquinha para a sua antiga fazenda, cujo resgate desemboca em um encontro inusitado e predestinado, o que invoca um caráter místico da narrativa.
O espaço se refere a um ambiente rural e o tempo tem como base a trajetória entre a fuga, o resgate da vaca e o clímax amoroso[1]. Quanto ao espaço, não temos uma localização exata, provavelmente é “o sertão localizado entre Goiás e Minas Gerais”, (SANTOS, 2015, p.4). O narrador, em terceira pessoa (não participa diretamente da história, mas dela tudo sabe), dá algumas pistas, mesmo que fixionais, dos lugares explorados no conto, alguns identificados como as fazendas Pedra e Pãodolhão, a estrada das Tabocas, o Arcanjo; e outros espaços genéricos que denotam a paisagem do conto como os riachos, os pastos, o cerrado, o rio, os morros, os campos, as colinas, etc. Sobre o tempo, também há algumas referências perceptíveis nas escolhas verbais (viajava, solevava, evitava...), nos advérbios (anoiteceu, a tardinha), substantivos e adjetivos ( O dia era grande, azul e branco, o sol inteiro, crepúsculo, treva). Com base nessas características, observa-se certa harmonia entre o espaço e tempo.
As personagens que ganham destaque no conto são a vaquinha e o peão (senhor-moço). Nesse contexto, o conto humaniza o animal e o denota uma áurea transcendente digno do papel principal, por ser o elo da história de amor. Assim sendo, provoca uma reflexão que explora sentimentos universais e peculiaridades regionalistas ao mesmo tempo. Também, é notória a opção por uma linguagem oral[2] e uma seleção lexical própria do autor.
Por fim, vale destacar que o conto “é um desafio à narração convencional porque os seus processos mais constantes pertencem às esferas do poético e do mítico”, (BOSI, 1994, p. 433). Nesse sentido, o escritor superou os perigos e elaborou a matéria regional com um senso transfigurador, que fez dos seus livros maduros experiências de vanguarda dentro de um temário tradicional. (CANDIDO, 1999, p. 94).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 32ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CANDIDO, Antônio. Iniciação à Literatura Brasileira: Resumo para principiantes. 3ª ed. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP, 1999.

ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SANTOS, Pedro Brum. Roteiro da Atividade 5. Disciplina: Literatura Brasileira Narrativa. Santa Maria: UFSM/UAB, 2017. Disponível em: https://ead08.proj.ufsm.br/moodle2_UAB/pluginfile.php/206984/mod_resource/content/1/Gabarito_unidade_V.pdf. Acesso em 13 de junho de 2017.



[1] Rosa também faz uso alguns recuos temporais.
[2] Evidenciado por meio de inversões na frase, pontilhados, interrogações, aspas e travessões.

Teoria do Medalhão e o Amor

 A pesquisadora em Literatura, Lúcia Helena (2015, p.180) destaca que Machado de Assis e Clarice Lispector “trabalham seus personagens revelando-nos seres em solidão, guiados pela ponta dos dedos de uma escrita abrasiva, em uma narrativa que rasura, no fundo e na forma, algumas plataformas de uma estrutura social [...]”. Nos contos “Teoria do Medalhão” e “Amor”, tais características também são evidentes, tanto na crítica capitalista burguesa de Machado de Assis, como na inércia e nas indagações da personagem Ana, de Clarice Lispector.
O mundo urbano carioca em "Teoria do Medalhão" tem características históricas e contextuais da sociedade próprias de sua época, assim como estruturas narrativas e linguagens peculiares, próprias de um diálogo. A figura paterna em Machado de Assis apresenta um mundo capitalista, individualista, patriarcal, estratégico, no sentido de não entrar em polêmicas ou discussões para estar acessível ao maior número de vantagens que levaria a um futuro promissor (Medalhão); tal visão de mundo tem como fundo uma crítica reflexiva que só será acessada por um leitor com perspectiva semelhante.
Em resumo, a Teoria do Medalhão mostra o reflexo de uma sociedade que se moldou às perspectivas das melhores vantagens (pessoais, sociais, políticas, econômicas...). Trata-se de um mundo urbano planejado, articulado, racional e de uma linguagem ousada, e sensível ao retratar algo que dialogue com o homem do seu tempo, de uma forma indireta e seletiva. O conto não deixa de ser uma grande provocação, pois ao mesmo tempo em que pai desaconselha o uso de ironias, porque tal atitude é própria dos “céticos e desabusados”, ele cita O Príncipe. Essa aproximação tem uma evidente inversão de valores, ao comparar a finalidade das regras, moralmente questionáveis, entre as duas obras, visto que a Teoria do Medalhão trata-se de interesses pessoais e o livro de Machiavel, interesses estatais. Esse paralelo é em essência uma grande ironia no conto.
O conto Amor de Clarice Lispector traz muitas informações nas “entrelinhas”, a autora explora o “dito no não dito” e revela não só um enredo profundo como dialoga com leitores de todas as épocas, sem perder a sua atualidade, por meio de alguns recursos metafóricos e pela sensibilidade de traduzir a essência humana.
Em um primeiro momento, o narrador onisciente revela uma mulher envolvida em seu próprio mundo de esposa, mãe e dona do lar. No segundo parágrafo é notória uma comparação entre o que circunda a personagem e ela própria, ou seja, tudo em sua volta cresce, mas Ana permanece pequena. Uma evidência disso é a comparação com um lavrador, pois seu propósito é servir de instrumento para que os seus frutos cresçam.
Enfim, inicialmente temos uma personagem acomodada em sua realidade, insegura, frágil, onde a felicidade não importa mais que o dever cumprido. Ela se firma no palpável, no regrado e evita ou foge do abstrato.  Essa “zona de conforto” é posta em prova quando ela se compara a imagem do “outro”, no caso, a figura do cego, e isso só é possível fora da sua redoma de vidro (casa/privado), em um espaço desconhecido e desafiador, que vai além de suas convicções (o bonde/público).
No conto de Clarice Lispector, existem acontecimentos que ocorrem ao redor de Ana e os que ocorrem somente no seu pensamento. Por exemplo: “Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. [...] Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe a garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada” (LISPECTOR, 1998, p.16). Apesar de ser uma mulher convencionalmente livre, Ana é refém das suas obrigações familiares e ao comodismo que esse papel representa. O interessante, é que esse fato não é aparentemente errado, mau ou gerador de infelicidade, mas é limitante, e isso é que a faz refletir quase que por acaso ao deparar-se com o cego e o Jardim Botânico.
Nesse sentido, a personagem está presa em seu contexto familiar, enquanto há um mundo amplo e desafiador, com sensações inéditas e com sentidos jamais explorados. No entanto, ela enxerga sua casa/prisão como algo seguro, onde não precisa ter maiores preocupações e comprometimentos, além do seu conveniente papel de mãe e esposa dedicada.
No entanto, por mais que haja uma inquietação interna, Ana chega ao seu mundo (casa) diferente, tudo está igual, mas ela não, pois foi despertada pela “cegueira”. As suas indagações transcendem o conto e também dialogam com os leitores.


OUTRAS CARACTERÍSTICAS

Os contos apresentam poucos personagens e uma estrutura diferenciada. Em Teoria do Medalhão, o autor opta por não usar um narrador e sim um diálogo entre pai e filho, na casa da família, uma hora antes do filho completar 21 anos. Trata-se de uma estrutura baseadas em cenas, cujo tempo literário procura se assemelhar ao tempo real.
O conto Amor apresenta um narrador onisciente em 3ª pessoa. O tempo da narrativa também é curto, inicia em um bonde, passa por uma breve parada no Jardim Botânico e se encerra com a chegada de Ana em seu lar. Nesse conto, o narrador, que não participa da história, também faz uso de uma analepse temporal (2º ao 5º parágrafo).
Em relação ao título, o medalhão é um objeto que se usa próximo ao peito e contempla duas faces, uma, geralmente bela e preciosa, a vista de todos e outra bem diferente, junto ao corpo.  Isso demonstra uma dupla aparência e significa que nem sempre o que os outros vêm é o que mais se aproxima da pessoa. Trata-se de uma possibilidade metafórica que condiz com a sua época de produção, pois o texto, contextualizado no século XIX, faz uma ponte e uma crítica direta com a sociedade burguesa da época, como já mencionado, porém, sem perder a essência reflexiva para os dias atuais.
Já o título Amor, é amplo, indireto e intrigante, pois ele pode se relacionar tanto ao amor ao próximo, ao se comparar com o cego, mesmo no sentido metafórico, como ao amor familiar (entrega e dedicação). As possíveis definições de amor, também, podem ser apontadas como um questionamento indireto entre a autora e o leitor.
Vale destacar, que Lispector vivenciou o fim da democracia nacionalista da República e o início da ditadura no Brasil (SEIDEL, MADEIROS, 2014, p.3), assim sendo, a alienação familiar e a opção por um “mundo perfeito”, sem grandes problemas ou compromissos sociais permeiam um pano de fundo neste conto, assim como a submissão da mulher aos deveres domésticos, e a própria falta de liberdade, característica dessa época. Ana não é uma grande heroína, mas é uma mulher comum, mergulhada em seus conflitos e desafios, como tantas outras, em todos os tempos.

Depois de refugiar-se no Jardim Botânico entre plantas e bichos, observa aquele mundo natural, instintivo, sem regras, com um misto de fascínio e nojo. Ela sabe que jamais enxergará a vida da mesma forma, mas volta correndo para casa, agarra-se ao filho, recebe visitas, dá ordens à empregada, retoma sua rotina doméstica e previsível. (PAJOLLA, 2019, p.39)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ASSIS, Machado de. Teoria do Medalhão. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf. Acesso em 25 de maio de 2017.

HELENA, Lucia.  Três momentos do desassossego na literatura brasileira: Machado, Lispector E Noll. Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.6, Número 3, setembro-dezembro, 2015. Disponível em: http://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/2208/pdf_437. Acesso em 06 de junho de 2017.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família: Amor. Editora Rocco, 1998. Disponível em: https://ead08.proj.ufsm.br/moodle2_UAB/pluginfile.php/206974/mod_resource/content/1/Clarice_Lispector_-_Lacos_de_Familia.pdf. Acesso em 30 de maio de 2017.

PAJOLLA, Alessandra Dalva de Souza. Identidades femininas múltiplas em crônicas de Clarice Lispector. Maringá: UEM, 2010. Disponível em http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/adspajolla.pdf. Acesso em 06 de junho de 2017.


SEIDEL, Vizette Priscila; MEDEIROS, Karla O. Armani. Os Jogos Sociais em Machado de Assis e Clarice Lispector. Barretos: Unibarretos, 2014. Disponível em: http://revistadigital.unibarretos.net/index.php/historia/article/view/34/36. Acesso em 06 de junho de 2017.


FONTE

REGINATTO, Andrea. Roteiro de orientação da Tarefa 2. Disciplina: Literatura Brasileira Narrativa. Santa Maria: UFSM/UAB, 2017. Disponível em: https://ead08.proj.ufsm.br/moodle2_UAB/mod/assign/view.php?id=157008. Acesso em 01 de junho de 2017.


SANTOS, Pedro Brum. Roteiro da Atividade 4. Disciplina: Literatura Brasileira Narrativa. Santa Maria: UFSM/UAB, 2015.

Cinco Minutos, José de Alencar

Neste romance, o leitor é envolvido em pequenas doses de mistério, persistência, pureza e esperança. Em suma, trata-se de uma história de amor que é capaz de promover milagres.

Em Cinco Minutos de José de Alencar, o narrador é a personagem principal. Ele é a cerne da história, pois relata/narra a sua aventura amorosa a sua prima e indiretamente ao leitor, como logo percebemos no início da narrativa:
É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima...
Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o ônibus de Andaraí. (ALENCAR, 2009, p.7).

Trata-se de um narrador homodiegético e de um discurso direto em primeira pessoa, essa posição é perceptível do início ao fim do romance:
Podia dar-lhe outra resposta mais breve e dizer-lhe simplesmente que tudo isto sucedeu porque me atrasei cinco minutos. (2009, p.53).

Percebe-se que o narrador tem uma visão com, focalização interna, ou seja, uma visão parcial, a partir da sua perspectiva. Tal característica pode ser evidenciada em todo o romance, como por exemplo, no momento que o narrador/personagem acredita que sua amada (Carlota) esta o deixando.
 “A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol, transbordando, escondia-se nas ondas; um raio pálido e descorado veio enfiar-se pela nossa janela e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada, ou antes, deitada em uma conversadeira... Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu beijava, ela voltou-se e fixou-me com seus grandes olhos lânguidos.
Depois, fazendo um esforço, reclinou-se para mim e apoiou as mãos sobre o meu ombro”. (2009, p.50).

Vale destacar, que o romance se baseia em um fato que já aconteceu e apresenta recursos narrativos peculiares ao seu narrador, como as suas várias interrupções no desenrolar da história. O protagonista infere no discurso sua opinião, considerações, indagações e conclusões, inclusive, por exemplo, suas teorias sobre as mulheres:
A mulher é uma ílor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita ou feia (2009, p.9).

Essa inferência é feita naturalmente no romance, como se ele quisesse exprimir o contexto psicológico daquele momento, pois a narrativa incorpora suas reflexões e percepções.
Apesar de o romance ser direcionado a uma terceira pessoa (a prima), o leitor não deixa de se envolver com a história. Esse diálogo se dá principalmente, pelos já mencionados comentários, reflexões e considerações do narrador. Outro recurso para envolver o interlocutor é o mistério/suspense que permeia o romance, assim como os desencontros que geram uma verdadeira aventura.
Além disso, o próprio canal, ou seja, a carta é compartilhada com o leitor. Essa opção do autor é interessante, pois se trata de um canal pessoal e inviolável (uma carta), em um contexto íntimo e próximo (uma comunicação entre primos) que serve de pano de fundo para o seu romance (aberto, público). 
A questão social das personagens também é de fácil percepção. Apesar de não ser citado diretamente, percebe-se que tanto o narrador/personagem como a sua amada são pessoas de uma classe social alta. Algumas pistas são deixadas para o leitor chegar a essa conclusão, como por exemplo, os lugares que eles frequentam (bailes, teatro), as viagens, o vestuário (tecidos nobres), o perfume. Também é notório, que o dinheiro (ou a falta dele) não foi motivo para impedir que o narrador/personagem fosse atrás de sua amada, arcando com todas as despesas ordinárias e extraordinárias, como a compra de um cavalo, a viagem de canoa, a ida para a Europa, etc. Tais condições colaboram para o sucesso da concretização desse amor.
Antes de finalizar, também vale destacar outra peculiaridade do romance: a fidelidade aos aspectos de sua época. A narrativa se dá no ano de 1857, costumes e características desse tempo estão evidentes no romance, como por exemplo, o uso de cartas para se comunicarem, os lenços bordados com as iniciais dos nomes, a predominância de ambientes tranquilos, amigáveis e a disseminação de valores como o respeito, a vida, o amor e a própria ingenuidade. Valores esses, cada vez mais raros na época atual.
Por fim, bastou cinco minutos para desencadear um amor infinito, desses que fizeram muitas donzelas suspirarem e que fazem muitos leitores saborear uma história de amor verdadeiro e invencível. O destino vence os desencontros, à distância e proporciona curas para corpo e para alma.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ALENCAR, José de. Cinco Minutos e Viuvinha. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.

Sabe Moço

Sabe, moço,
Que no meio do alvoroço
Tive um lenço no pescoço
Que foi bandeira pra mim
Que andei em mil peleias
Em lutas brutas e feias
Desde o começo até o fim
Sabe, moço,
Depois das revoluções
Vi esbanjarem brasões
Pra caudilhos coronéis
Vi cintilarem anéis
Assinatura em papéis
Honrarias para heróis
É duro, moço,
Olhar agora pra história
E ver páginas de glórias
E retratos de imortais
Sabe, moço,
Fui guerreiro como tantos
Que andaram nos quatro cantos
Sempre seguindo um clarim
E o que restou?
Ah, sim!
No peito em vez de medalhas
Cicatrizes de batalhas
Foi o que sobrou pra mim
                                         (Francisco Alves)


Comentário
A letra da música de Francisco Alves apresenta dois momentos do peão/soldado farroupilha, o primeiro, repleto de glória e heroísmo (passado), o segundo, de lamento e abandono (presente). Quanto a sua forma, o texto é distribuído em quatro estrofes e 27 versos, com métricas e rimas irregulares, com predominância de versos emparelhados, outros intercalados, responsáveis pelo ritmo da canção, que traz como complemento fundamental a entonação do seu intérprete. O texto, em comunhão com a interpretação musical, caracteriza a fala peculiar do gaúcho campeiro.
Nos versos 1, 8, 15, 19 e 23 temos uma intervenção direta com o interlocutor, o qual o sujeito poético compartilha suas memórias, indagações e inconformismo. Na primeira estrofe, o patriotismo e o amor por sua terra estão bem claros, assim como sua alma guerreira, comprometida do início ao fim com os conflitos da revolução farroupilha.
Na estrofe seguinte, o gaúcho guerreiro começa a perceber certa incoerência entre aqueles que realmente lutaram pelo Rio Grande e aqueles que foram condecorados, homenageados e imortalizados por essa luta. Além da forte hierarquia militar há uma evidente hierarquia social.
Nesse sentido, a figura mística do gaúcho herói vai morrendo e nasce outro olhar sobre esse homem sulino. Nas últimas estrofes, o peão/soldado confessa a amargura e a dureza dessa transição. Pois, a história como foi redigida, imortalizou e glorificou só a quem lhe era conveniente; para o “guerreiro ralo”, pouco ou nada lhe sobrou. A sua única herança são as cicatrizes de batalhas. Estas, como se percebe no texto, vão além de marcas em seu corpo, pois as mais profundas estão em sua alma.

Em suma, esta música alude à figura do homem gaúcho que supostamente lutou de forma heroica para defender a sua terra e os seus ideais. Ao ser narrada por um sujeito desse momento histórico, ele revela aquilo que está além dessa época “gloriosa e imortalizada” e revela um novo homem, um novo gaúcho, não tão sublime como os registrados em fotos e livros, mas real e palpável ao seu novo tempo e espaço.

Boi Velho e o Gauchismo

O conto O Boi Velho fala da história de dois bois, Dourado e Cabiúna, pertencentes a uma família de estancieiros e “mui políticos”, composta por homens, mulheres e crianças (patrões e peões). A história humaniza os animais e de certa forma, animaliza o homem, e provoca uma reflexão que explora sentimentos universais banhados em peculiaridades regionalistas.
Em síntese, em dias de verão, os bois da Estância dos Lagoões puxavam em carretões as crianças e as senhoras-donas para se banharem em um arroio próximo a sua moradia. Esse costume campeiro era motivo de alegria para as crianças e maestria para os bois. Com o tempo, os “miúdos” cresceram, os dias passaram e Dourado não chegou a ver a entrada de certo inverno. Com a morte do amigo, Cabiúna sofria, e berrava de saudades. Não demorou muito para que o boi velho sentisse o fardo dessa ausência e da solidão. Abatido, magro e quase sem forças, os seus senhores, que cresceram usufruindo dos seus serviços, resolveram mandar sacrificá-lo.  De um lado, o bicho sofrendo por perder um amigo, do outro, o homem preocupado em não perder dinheiro. Entre tantas perdas, quem não perdeu o bom senso foi o narrador-personagem.
Blau Nunes não participa diretamente da história, mas dela tudo sabe, inclusive dos sentimentos mais íntimos das personagens. No entanto, como se trata de uma lembrança de um causo que ele viu, logo se supõem que de certa forma ele vivenciou tal episódio. O fato de não participar diretamente da história não significa que não participa do conto, pois a sua presença, principalmente em relação ao seu interlocutor “indefinido” é bem clara.
O narrador inicia o seu relato com uma expressão de espanto e com uma tese: “Cuê-pucha!... é bicho mau o homem”[1]. Logo, na sequencia, interpela o seu interlocutor e se inclui no discurso: “Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!”. Nessas primeiras frases, além da presença do narrador e do interlocutor, é notória a opção por uma linguagem oral[2], coloquial, ou seja, um vocabulário dialetal da região, inclusive com expressões populares e de época antiga (vancê, mui, alçou, etc.) que irá selar todo o conto.
Segundo Bordini (1973, p. 70), o narrador, também qualifica as personagens[3]; narra linearmente (cronológica); usa pausa com ênfase ou indício; usa linguagem gestual (transcrita)[4]; sublinha a narração com exclamações e também faz suposições sobre as personagens[5]. Todos esses apontamentos estão bem claros no texto.
De acordo com Luiz Nunes (1973, p. 41 e 42), as personagens são descritas por meio de características físicas ([...] era baio; o outro[...] era preto...); de aspectos da personalidade (Cabiúna [...] era mui companheiro, [...] eram pais da paciência); de aspectos morais, no caso, o juízo pessoal do narrador/personagem (...é mesmo bicho mau, o homem); de atitudes peculiares, comportamentos habituais ([...] quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo que estavam encostados no cabeçalho [...]). Ainda conforme o escritor, a descrição (adjetivação) do conto também se dá por meio da narração de atitudes, ações e palavras das personagens, que constituem a ação do relato propriamente dita.
As personagens principais sãos os bois, sendo Cabiúna o protagonista, e as pessoas envolvidas em sua morte são os antagonistas. O antagonismo se refere a um tipo de atitude da humanidade, presente na família gaúcha dos Silva. Vale ressaltar, que apesar de Cabiúna ser um bicho, ele comunga de sentimentos universais inerentes ao homem, como a tristeza e a saudade.
O ambiente campeiro (arroio, mato, peral, areia, árvores frutíferas, etc.) é descrito no início do conto de forma peculiar ao ambiente rural. Nota-se, em relação ao discurso, que quando o narrador diz que a estância era como “aqui e o arroio” certa aproximação entre ele e o interlocutor em tempo e espaço.
O ambiente social, no caso familiar, reitera os costumes do campo, onde o homem era responsável pelo sustento da casa e as mulheres cuidavam dos afazeres domésticos e das crianças. Tanto os aspectos geográficos como os sociais servem de artifícios para fazer crer que o mundo narrado é possível. Também colaboram para a verossimilhança, as atitudes humanas exploradas no conto, como o inconformismo de Blau Nunes com a maldade dos homens e a própria cobiça destes. Trata-se de sentimentos, aspectos psicológicos explorados no mundo fictício e vivenciados no mundo real. Dessa forma, o conto ganha um tom de veracidade sem abdicar da literalidade, aspecto esse, que contempla toda a obra Contos Gauchescos.

A FIGURA DO GAÚCHO
Por trás dos acontecimentos, Simões Lopes Neto mostra os valores do gaúcho através dos costumes do campo (os carretões puxados por bois) e por meio dos juízos de valores do narrador-personagem. Como já dito, Blau fica espantado com o desfecho que os homens deram ao animal, a ponto de concluir que o bicho da história era o homem.  Nesse sentido, o narrador-personagem apresenta características pessoais conferidas ao homem gaúcho, como a honra, a valorização dos animais, a indignação com a cobiça.
O tipo de discurso usado pelo narrador, como um homem decidido, crítico, honroso, etc., também se assemelha a caricatura gaúcha. A história da morte do boi, não foi um simples causo, foi algo que marcou a sua vida (“Olhe, nunca me esqueço dum causo que vi” [...]). Assim sendo, Blau faz questão de se posicionar, como vimos nas duas últimas frases do conto, que inclusive reitera o início do texto e confirma a sua tese. O discurso foi construído para que o interlocutor se convencesse que bicho mau é o homem.

A MORTE DO GAUCHISMO?
Por um lado, o típico gaúcho é caracterizado no narrador personagem, Blau Nunes, por outro, a família Silva, que também é gaúcha, transmite uma nova percepção do homem campeiro.
ZIBERMANN (1973, p. 36) destaca que os Contos Gauchescos expressam a cisão temporal entre o passado (carregado de positividade) e o presente. Para a autora, esse passado, caracterizado enquanto um sistema econômico, social e ideológico foi perdido. A explicação para esse rompimento parece em Boi Velho. Segundo a autora, os Silva, responsáveis pela morte do boi Cabiúna, desvalorizam os momentos vivenciados com o boi, o que vem contrariar o código proposto na obra:
No fundo deste ato, está, pois, um gesto mais definitivo: eles provocam a ruptura da solidariedade entre o homem e o animal, resultante da visão sacralizada e mítica com que os indivíduos agem e se posicionam diante do mundo natural, (ZIBERMANN, 1973, p.36).
Tal ruptura, justifica Zibermann, se dá porque os Silva pertencem a uma outra época, a uma nova classe e a um tempo de paz:
Por sua vez, os Silva pertencem a um outro tempo, porque eles não se caracterizam como guerreiros, mas como políticos [...] Suas atividades não são militares, nem aventureiras, como as do autêntico gaúcho da época da conquista bélica, e sim partidárias, própria a um tempo de paz. [...] Instaura-se a paz, e com ela sobrevêm o político e a morte da tradição. Realidade presente de João Simões, velhice de Blau Nunes, os Silva representam a instalação de uma nova era e a morte do gauchismo, (idem, 1973, p.36).

Com isso, é possível concluir que “O Boi Velho” vai muito além de uma reflexão sobre os costumes campeiros ou as atitudes humanas; o conto indaga o papel da pessoa gaúcha, o seu lugar em uma “sociedade de paz”, os desafios da sua época e a sua própria identidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BORDINI, Maria da Glória. Atuação do Narrador. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).

NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos: Trezentas Onças. 9ª ed. Globo: Porto Alegre, 1976.

NUNES, Luiz Arthur. Uma tipologia de personagens. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).

ZIBERMANN, Regina. Presente e Passado nos Contos Gauchescos. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).




[1] Todas as citações de trechos do conto se referem à obra Contos Gauchescos, 1976, p.26 e 27.
[2] Evidenciado por meio de inversões na frase, pontilhados, exclamações, reticências e travessões.
[3] Exemplo: “Eram dois pais da paciência, os dois bois. [...] Cabiúna, era preto, com orelha...”.
[4] Exemplo: “E ajoelhou ... e caiu... e morreu”.
[5] Exemplo: “Cá pra mim o boi velho – uê! Tinha caraca grossa nas aspas! ...”.

Trezentas Onças e a imagem do homem gaúcho

No conto Trezentas Onças, João Simões Lopes Neto faz uso de um narrador-protagonista (homodiegético), por meio de uma linguagem culta sem abrir mão do léxico regionalista, como destaca, Antônio Candido (1999, p.67): “Contos gauchescos (1912), delega a mediação narrativa, exercida através de uma prosa construída na confluência da fala popular com a estilização erudita”.
Também vale destacar, que a narrativa se apresenta como um relato oral, evidenciado por meio de inversões na frase, pontilhados, exclamações, reticências e travessões[1]. Por meio de lembranças, o narrador relata fatos que aconteceram no passado, mas ainda muito próximo dele, como percebemos na expressão: “Parece que foi ontem!” (LOPES, 1976, p.3).
Os valores gaúchos como honestidade e honra são inseridos sutilmente na narrativa, como por exemplo, no apreço e respeito de Blau Nunes pelo seu patrão “um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...”, (LOPES,1976, p.3). Nesse sentido, Blau Nunes fica desesperado com a hipótese que o seu patrão pense que ele seja um ladrão, um homem desonesto. Posteriormente, encontra conforto ao atinar uma solução honrosa para a sua adversidade.
A narrativa também revela uma minuciosa descrição, pois a personagem proporciona ao leitor - através de uma abordagem metafórica - a percepção mais íntima da sua alma, ora de vaqueiro regionalista, ora de sentimentos universais:
[...]Deus o conserve!…, sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...
- Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... (NETO, 1976, p.4).
Em outras palavras, Blau Nunes apresenta características pessoais conferidas ao homem gaúcho, mas também explora sentimentos inerentes a natureza humana, independente de tempo e espaço:
Em todos os seus contos, o interesse psicológico logo se impõe ao leitor, como valor predominante; a paisagem, as singularidades do ambiente, a própria forma dialetal, não passam de um meio que empregou para exprimir as dores e alegrias humanas. Em última análise, dentro dessa obra regional – ou regionalista – não é só o tipo característico de uma determinada região que aparece, mas o homem de sempre, já tão complexo na sua feição de primitivo, tão vulnerável e ameaçado, na aparência de forte, às vezes triste vítima do destino. (MEYER, 1960, p. 154).

Sensibilidade e entrega
A natureza ganha um enfoque especial neste conto. Ela é descrita sobre o olhar, os sentimentos e as impressões da personagem. Muitas são as afinidades de Blau Nunes com a natureza: as Três-Marias inspiram sentimentos de saudades de sua infância, dos seus pais e de ternura ao lembrar os seus filhos; o cachorro também remete a ternura dos filhos e a lealdade; o cavalo, sentimentos de companheirismo, de garra e o grilo de alegria, nesse sentido o próprio narrador salienta: “O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...”, (LOPES, 1976, p.5).
Nesse sentido, Morfadini (2016, p.7) destaca que “assim como o mergulho na água, no início da narrativa, recupera as forças físicas de Blau, a comunhão dele com a natureza no fim do conto, lhe dão forças espirituais para renascer e enfrentar o patrão”.
Segundo o professor Flávio Loureiro Chaves (1982, p. 223), “a descrição da paisagem local se faz indispensável, mas não porque se esgote em si mesma e sim porque é fundamento duma concepção existencial muito mais ampla em que pretende se restabelecer o vínculo entre o homem e a natureza”.
Assim sendo, temos um homem aparentemente forte (típico gaúcho), mas não imune ao choro e ao desespero (sentimentos universais). Uma pessoa íntegra, simples, sensível e intimamente compassiva aos seres que o rodeiam.



Referência Bibliográfica

CANDIDO, Antônio. Iniciação a Literatura Brasileira: Resumo para Principiantes.  3ª ed., São Paulo: Humanitas, 1999.

CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura. Editora Mercado Aberto: Porto Alegre, 1982.

MEYER, Augusto. Prosa dos pagos. São José: Rio de Janeiro, 1960.

MONFARDINI, Adriana. Roteiro de Estudos 4: Trezentas Onças. Fundamentos da Literatura Brasileira, 5ª fase, Letras – Língua Portuguesa e Literatura. Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Aberta do Brasil, 2016.

NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos: Trezentas Onças. 9ª ed. Globo: Porto Alegre, 1976.



[1] Exemplo:
— É verdade... antes morresse, que isto!
— Deus me perdoe! — que até parecia fala.