O conto O Boi Velho fala da história de dois
bois, Dourado e Cabiúna, pertencentes a uma família de estancieiros e “mui
políticos”, composta por homens, mulheres e crianças (patrões e peões). A
história humaniza os animais e de certa forma, animaliza o homem, e provoca uma
reflexão que explora sentimentos universais banhados em peculiaridades
regionalistas.
Em síntese, em dias de
verão, os bois da Estância dos Lagoões puxavam em carretões as crianças e as
senhoras-donas para se banharem em um arroio próximo a sua moradia. Esse
costume campeiro era motivo de alegria para as crianças e maestria para os bois.
Com o tempo, os “miúdos” cresceram, os dias passaram e Dourado não chegou a ver
a entrada de certo inverno. Com a morte do amigo, Cabiúna sofria, e berrava de
saudades. Não demorou muito para que o boi velho sentisse o fardo dessa
ausência e da solidão. Abatido, magro e quase sem forças, os seus senhores, que
cresceram usufruindo dos seus serviços, resolveram mandar sacrificá-lo. De um lado, o bicho sofrendo por perder um
amigo, do outro, o homem preocupado em não perder dinheiro. Entre tantas perdas,
quem não perdeu o bom senso foi o narrador-personagem.
Blau Nunes não participa
diretamente da história, mas dela tudo sabe, inclusive dos sentimentos mais
íntimos das personagens. No entanto, como se trata de uma lembrança de um causo
que ele viu, logo se supõem que de certa forma ele vivenciou tal episódio. O
fato de não participar diretamente da história não significa que não participa
do conto, pois a sua presença, principalmente em relação ao seu interlocutor
“indefinido” é bem clara.
O narrador inicia o seu
relato com uma expressão de espanto e com uma tese: “Cuê-pucha!... é bicho mau
o homem”
.
Logo, na sequencia, interpela o seu interlocutor e se inclui no discurso:
“Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!”. Nessas
primeiras frases, além da presença do narrador e do interlocutor, é notória a
opção por uma linguagem oral
, coloquial,
ou seja, um vocabulário dialetal da região, inclusive com expressões populares
e de época antiga (vancê, mui, alçou, etc.) que irá selar todo o conto.
Segundo Bordini (1973, p.
70), o narrador, também qualifica as personagens
;
narra linearmente (cronológica); usa pausa com ênfase ou indício; usa linguagem
gestual (transcrita)
;
sublinha a narração com exclamações e também faz suposições sobre as
personagens
. Todos
esses apontamentos estão bem claros no texto.
De acordo com Luiz Nunes
(1973, p. 41 e 42), as personagens são descritas por meio de características
físicas ([...] era baio; o outro[...] era preto...); de aspectos da
personalidade (Cabiúna [...] era mui companheiro, [...] eram pais da
paciência); de aspectos morais, no caso, o juízo pessoal do narrador/personagem
(...é mesmo bicho mau, o homem); de atitudes peculiares, comportamentos
habituais ([...] quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo
que estavam encostados no cabeçalho [...]). Ainda conforme o escritor, a
descrição (adjetivação) do conto também se dá por meio da narração de atitudes,
ações e palavras das personagens, que constituem a ação do relato propriamente
dita.
As personagens principais
sãos os bois, sendo Cabiúna o protagonista, e as pessoas envolvidas em sua
morte são os antagonistas. O antagonismo se refere a um tipo de atitude da
humanidade, presente na família gaúcha dos Silva. Vale ressaltar, que apesar de
Cabiúna ser um bicho, ele comunga de
sentimentos universais inerentes ao homem, como a tristeza e a saudade.
O ambiente campeiro
(arroio, mato, peral, areia, árvores frutíferas, etc.) é descrito no início do
conto de forma peculiar ao ambiente rural. Nota-se, em relação ao discurso, que
quando o narrador diz que a estância era como “aqui e o arroio” certa
aproximação entre ele e o interlocutor em tempo e espaço.
O ambiente social, no caso
familiar, reitera os costumes do campo, onde o homem era responsável pelo
sustento da casa e as mulheres cuidavam dos afazeres domésticos e das crianças.
Tanto os aspectos geográficos como os sociais servem de artifícios para fazer
crer que o mundo narrado é possível. Também colaboram para a verossimilhança,
as atitudes humanas exploradas no conto, como o inconformismo de Blau Nunes com
a maldade dos homens e a própria cobiça destes. Trata-se de sentimentos,
aspectos psicológicos explorados no mundo fictício e vivenciados no mundo real.
Dessa forma, o conto ganha um tom de veracidade sem abdicar da literalidade,
aspecto esse, que contempla toda a obra Contos Gauchescos.
A FIGURA DO GAÚCHO
Por trás dos acontecimentos,
Simões Lopes Neto mostra os valores do gaúcho através dos costumes do campo (os
carretões puxados por bois) e por meio dos juízos de valores do narrador-personagem.
Como já dito, Blau fica espantado com o desfecho que os homens deram ao animal,
a ponto de concluir que o bicho da história era o homem. Nesse sentido, o narrador-personagem apresenta
características pessoais conferidas ao homem gaúcho, como a honra, a
valorização dos animais, a indignação com a cobiça.
O tipo de discurso usado pelo
narrador, como um homem decidido, crítico, honroso, etc., também se assemelha a
caricatura gaúcha. A história da morte do boi, não foi um simples causo, foi
algo que marcou a sua vida (“Olhe, nunca me esqueço dum causo que vi” [...]).
Assim sendo, Blau faz questão de se posicionar, como vimos nas duas últimas
frases do conto, que inclusive reitera o início do texto e confirma a sua tese.
O discurso foi construído para que o interlocutor se convencesse que bicho mau
é o homem.
A MORTE DO GAUCHISMO?
Por um lado, o típico gaúcho é
caracterizado no narrador personagem, Blau Nunes, por outro, a família Silva,
que também é gaúcha, transmite uma nova percepção do homem campeiro.
ZIBERMANN (1973, p. 36) destaca que
os Contos Gauchescos expressam a cisão temporal entre o passado (carregado de
positividade) e o presente. Para a autora, esse passado, caracterizado enquanto
um sistema econômico, social e ideológico foi perdido. A explicação para esse
rompimento parece em Boi Velho. Segundo a autora, os Silva, responsáveis pela
morte do boi Cabiúna, desvalorizam os momentos vivenciados com o boi, o que vem
contrariar o código proposto na obra:
No fundo
deste ato, está, pois, um gesto mais definitivo: eles provocam a ruptura da
solidariedade entre o homem e o animal, resultante da visão sacralizada e
mítica com que os indivíduos agem e se posicionam diante do mundo natural,
(ZIBERMANN, 1973, p.36).
Tal ruptura, justifica Zibermann,
se dá porque os Silva pertencem a uma outra época, a uma nova classe e a um
tempo de paz:
Por sua
vez, os Silva pertencem a um outro tempo, porque eles não se caracterizam como
guerreiros, mas como políticos [...] Suas atividades não são militares, nem
aventureiras, como as do autêntico gaúcho da época da conquista bélica, e sim
partidárias, própria a um tempo de paz. [...] Instaura-se a paz, e com ela
sobrevêm o político e a morte da tradição. Realidade presente de João Simões, velhice
de Blau Nunes, os Silva representam a instalação de uma nova era e a morte do gauchismo,
(idem, 1973, p.36).
Com isso, é possível
concluir que “O Boi Velho” vai muito além de
uma reflexão sobre os costumes campeiros ou as atitudes humanas; o conto indaga
o papel da pessoa gaúcha, o seu lugar em uma “sociedade de paz”, os desafios da
sua época e a sua própria identidade.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BORDINI, Maria da Glória. Atuação do
Narrador. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes
Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).
NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos:
Trezentas Onças. 9ª ed. Globo: Porto Alegre, 1976.
NUNES, Luiz Arthur. Uma tipologia de
personagens. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões Lopes
Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).
ZIBERMANN, Regina. Presente e Passado nos
Contos Gauchescos. Porto Alegre: Movimento, 1973. (Pertence à obra: Simões
Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira. Uma abordagem estruturalista).